Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Conheça o cineasta Gustavo Vinagre que quer naturalizar o sexo no cinema

Atualmente, o diretor carioca de 34 anos tem exibido, na capital, o documentário 'Lembro mais dos corvos'

Calejado ; com produções impactantes no currículo, entre os quais Filme para poeta cego (que integrava fetiche e literatura) ;, o cineasta Gustavo Vinagre estranhou recentemente uma pergunta despontada num debate sobre o filme A rosa azul de Novalis (ao lado do estreante Rodrigo Carneiro, formado em história e edição de filmes), durante o Festival de Berlim, em que participou do segmento Forum. Com uma cena de sexo e outra de exposição anal do protagonista no filme, Vinagre foi questionado sobre se tratar de um filme pornô. ;Entendo a postura de choque, diante do mundo em que se vive. Mas, quantas cenas de café da manhã a gente vê no cinema? Disse, em Berlim, que não tenho preconceito contra o rótulo pornô, mas ele serve para uma indústria específica ; e, voltando ao café ; alguém chama o filme com aquela cena de ;filme de café da manhã;?;, diz Vinagre, que defende a autenticidade no seu cinema.

Atualmente, o diretor carioca de 34 anos tem exibido, na capital, o documentário Lembro mais dos corvos. A fita explora o tema das necessidades e das memórias da atriz transexual Julia Katharine, conhecida dele há 10 anos. ;O lugar de intimidade vem pelo fato de fazer filmes sobre pessoas que eu admiro. Não me rendo apenas a elogios ; busco o lugar da admiração, da complexidade dos seres humanos que são;, observa. Nem tudo é verdade no filme que funde dados com hibridismo (que mescla traços de ficção).

;Nisso, os personagens ficam mais confortáveis para serem eles mesmos. No caso da Julia, por exemplo, as coisas ficcionais colocadas no filme driblavam o fato de ela estar muito insegura de tratar de histórias pessoais e talvez incorrer na exposição de pessoas da família. Jogamos com o hibridismo para que se sentisse tranquila, na ambiguidade. Julia pode falar verdades, que são a grande maioria do filme ; 90% do filme são todas histórias reais ;, e nos outros 10% ela poderia contar como se não fossem coisas reais ; como se fosse um personagem que não é mais ela;, explica o diretor, formado em letras e que estudou cinema em Cuba.

Por lá, Vinagre conheceu o revolucionário Lázaro Escarze, protagonista do premiado curta La llamada (2013), que, na trama do filme, aparece recém-conectado à possibilidade do uso de telefone. ;Ele me impressionava pelo modo como falava de política, e como a política regia a vida pessoal dele. Foi como aconteceu com o Glauco Mattoso, um poeta de quem queria estar perto, e me debrucei sobre a obra dele, desde a época do estudo de letras na USP. Houve afinidade e a disposição, como realizador, de fazer o filme com eles, que eram criadores dos filmes: há sempre uma negociação de como querem ser representados e isso transmite a segurança;, conta o diretor que, ano passado, teve A rosa azul de Novalis exibido, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, na mostra Futuro Brasil. Em cena, o dândi Marcelo Diorio alega ter sido, em outra vida, um poeta alemão à caça de uma rosa.

Sob anos de investigação, personagens levam à produção rápida em projetos curtos e autofinanciados. ;Quando faço um documentário, os desejos, sonhos dos personagens estão sempre presentes. Os fetiches também cabem, e trabalho todas estas imagens como material de arquivo. Tento daí plasmar isso nos filmes. Cabem ainda os delírios dos protagonistas e o que querem do futuro;, comenta.
Expor o corpo de Diorio, em minúcias, não surgiu de um tratamento de choque, programado, como ele conta. ;Sexo é um tema que eu adoro, gosto de falar de sexo. É muito importante para a humanidade falar disso. Grande parte dos problemas políticos que vivemos vem de pessoas altamente reprimidas e que estão doentes. O corpo é natural, o sexo é natural. O cinema naturaliza tanto a violência: num festival, por exemplo, vi um filme de terror japonês em que a menina recebe tantas facadas no coração até que ele é extirpado e este tipo de penetração as pessoas estão OK de ver. Já nas penetrações sexuais, elas querem que seja usada uma elipse;, pondera.
Mundo fragmentado

Além de trazer de Berlim o respiro de uma inconveniente sinusite, Vinagre trouxe consigo a maravilhosa experiência de quatro sessões com debates e salas cheias. Pelo festival alemão, concorreu ao prêmio Teddy ; atrelado ao cenário LGBT ;, onde até esteve cotado. ;Acho que o Teddy traz o rótulo que não exclui ; é um reconhecimento a mais;, avalia ele, ao mesmo tempo em que completa: ;Eu me identifico como cineasta gay ; acho importante fazer este statement também;.

Vinagre percebe que hoje em dia está tudo tão difuso e complexo, somadas as categorias que ; ao mesmo tempo em que importa ser gay ; não importa. ;A gente vive num mundo tão fragmentado, tão cheio de coisas ; tudo vira comércio, tudo vira um rótulo. O que significa algo agora, daqui a cinco anos ninguém sabe o que será. No Brasil de hoje, voltamos a ver outros significados;, sintetiza.

Ter Lembro mais dos corvos na última sessão da Vitrine Petrobras, ;que agora foi cortado, pela falta de apoio à cultura;, leva Vinagre a instigar ainda mais sobre a necessidade de as pessoas repensarem o que querem ver. ;É simbólico: um filme protagonizado por uma mulher trans, seguido pelo curta Tea for two, dirigido pela Julia ; primeiro curta de uma mulher trans a ser distribuído comercialmente ; carregar a ironia de que, agora que corpos diferentes estão tendo acesso a políticas públicas de incentivo ao cinema, com edital que priorizava diversidade, com a chance de contarem as próprias histórias, talvez não se ter mais uma janela para esses filmes;, lamenta.

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;O benefício da dúvida é o que mais instiga o espectador. A realidade é relativa. Existem muitas verdades;
Gustavo Vinagre, diretor de cinema