Diversão e Arte

Edição reúne novos desenhos e documentos das viagens de Philipp von Martius

Expedicionário que desenvolveu pesquisas relevantes para o conhecimento do país tinha uma obsessão pelo Brasil

Severino Francisco
postado em 02/03/2019 07:00
Philipp von Martius lançou as bases para o conhecimento da botânica no BrasilO expedicionário alemão Carl Friedrich Philipp von Martius tinha uma obsessão na cabeça: o Brasil. Médico de formação, ele estudou botânica, zoologia, desenho, música, medicina, história, etnologia, linguística e história. A paixão pelo Brasil aconteceu com a primeira viagem que realizou ao país, entre 1817 e 1820, na companhia de Spix. As suas pesquisas abriram todo um campo de prospecção para o conhecimento do Brasil.

Ele inventou um modelo de classificação para a paisagem brasileira, fundado na relação entre as plantas e o espaço. Era uma antecipação do que hoje se chama de ecossistema. Agora, os professores Pablo Diener e Maria de Fátima Costa lançam edição sobre o trabalho de Martius (Ed. Capivara), com uma série de documentos novos. Das 240 ilustrações, 150 são inéditas. Eles são pesquisadores especializados nas viagens científicas ao Brasil. E, nesta entrevista, eles falam sobre a paixão de Martius pelo Brasil, as viagens e o legado para o conhecimento do país.


No Martius se distingue dos outros grandes desenhistas-viajantes que passaram pelo Brasil?

Faz muitos anos que realizamos estudos sobre viajantes e artistas-viajantes e durante as investigações sobre a Expedição Langsdorff e principalmente sobre Rugendas, aqui e ali, nos deparávamos com Spix e Martius. Isso foi atiçando a nossa curiosidade e passamos a querer entender melhor a viagem desses dois bávaros. Martius e Spix eram cientistas e não artistas, embora muitas das ilustrações da viagem tenham sido feitas por Martius e sejam, efetivamente, agradáveis.

Martius era um médico de formação que se dedicou com especial afinco à Botânica. Muito provavelmente em função da convivência com as artes farmacêuticas do pai e da amizade familiar com o diretor do Jardim Botânico da Baviera. Tinha múltiplos talentos, como o musical ; tocava violino e registrou cantos de indígenas na partitura. E foi, principalmente, um homem de absoluta determinação e dedicação ao seu objeto de estudo, o Brasil. Preferimos chamar a dupla de ;expedicionários;. Explorador é mais utilizado para os que viajaram nos séculos anteriores, e nos sentimos mais à vontade em tratar Spix e Martius como os próprios se veem, como expedicionários.


Que documentos e imagens novos vocês trazem?

São quase incontáveis. Digamos que, das 240 ilustrações, cerca de 150 são inéditas em livro. Existem dois grandes conjuntos documentais para a expedição de Spix e Martius. O mais rico é o da Biblioteca do Estado da Baviera, em Munique, que possui o diário da viagem; os materiais preparatórios para as publicações da expedição, assim, por exemplo, esboços e primeiras formulações para os textos, diversas versões das ilustrações que fazem parte das obras; há também muita correspondência, sobretudo, de Martius, etc. Esse material foi catalogado em 1992, de modo que o pesquisador conta com um bom auxílio para seu trabalho.

O segundo grande acervo é o da Academia das Ciências da Baviera. Aí está toda a documentação administrativa e científica relacionada com os preparativos da viagem, entre outras coisas, as instruções para a expedição; mas também há muita correspondência dos anos da própria viagem, documentos posteriores à viagem e projetos para as publicações, além de manuscritos de conferências sobre o Brasil, que Martius proferiu durante sua longa vida acadêmica. Esses documentos não estão organizados e exige muito tempo trabalhar com esses materiais. Tudo isso é inédito.

No Brasil há pouca documentação sobre a expedição bávara, conservada principalmente no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e no Museu Imperial de Petrópolis. Esses materiais estão muito bem organizados. Também nos valemos da esplêndida coleção do Instituto Brennand, que reúne as gravuras de palmeiras. Cabe mencionar, também, as coleções botânicas, zoológicas e etnográficas nos respectivos museus de Munique. A conservação desse material é muito boa.

Vocês publicarão novos estudos sobre essas pesquisas?

Nós ainda publicaremos ; provavelmente no primeiro trimestre de 2019 ; as cartas-relatórios que Spix e Martius enviaram do Brasil para o seu rei, Maximiliano José I. Trata-se de uma narrativa bem imediata e sintética da viagem, onde encontramos as primeiras impressões que lhes provocava o mundo que percorriam. Transparece aí a relação que estabeleceram com os integrantes da comitiva austríaca, com as autoridades e também com personalidades do Brasil. Mas também, esses escritos mostram como os dois viajantes foram tomando decisões no percurso da viagem.

Quanto às imagens, nos deleitamos revisando os desenhos preparatórios para o Atlas e para as vistas da paisagem que acompanham a Flora brasiliensis. Mas o que realmente nos encantou foram os perfis da paisagem fisionômica do interior do Brasil, tanto do Nordeste como de Minas Gerais.

Qual a visão de Martius do Brasil? Enquanto os exploradores tinham uma visão predatória das riquezas, é possível afirmar que ele tinha uma visão científica e mais ecológica?

A motivação do Rei Maximiliano I era a de conquistar um acervo científico que valorizasse o novo reino criado. Uma questão de identidade.


Qual a importância das pesquisas e dos desenhos de Martins para o conhecimento do Brasil?

A catalogação é o resultado de um longo processo de sistematização, que se iniciou logo que chegaram à Europa. Ainda na década de 1820, na botânica e na zoologia, Spix e Martius ofereceram ao público em geral belas obras de taxonomia vegetal e animal, as quais foram muito bem recebidas. Especial destaque merece a catalogação das espécies das palmeiras (Historia naturalis palmarum), obra que idealizou já durante a viagem ao ver os elegantes espécimes nas mais diversas regiões do Brasil e que imediatamente recebeu elogios de Humboldt e de Goethe. Com o tempo, Martius se propôs levar adiante uma enciclopédica catalogação da totalidade da flora do Brasil (a Flora brasiliensis), uma obra iniciada em 1840 e concluída postumamente, em 1906. Essa catalogação das plantas lhe permitiu perceber a existência de diversos biomas, que descreve e analisa com detalhe. Trata-se de edições fartamente ilustradas e construídas com um sofisticado sentido estético.


Como era o trabalho de etnografia e qual a visão que tinham das sociedades indígenas?

Paralelamente às obras de botânica Martius hibernou-se no trabalho de etnografia. Apesar de ter uma visão etnocêntrica conseguiu individualizar culturalmente as diversas sociedades indígenas que conheceu e, posteriormente, estudar suas línguas e definir, pela primeira vez, quais eram os principais grupos linguísticos.

Prova de que Martius tinha consciência da relevância que o seu trabalho alcançaria a longo prazo é o fato de ele ter se empenhado por organizar e procurar o financiamento para a edição da monumental obra, em 40 tomos, da Flora brasiliensis, ao ponto de ter podido ser concluída 40 anos depois da sua morte. Parece-nos fora de dúvida que Martius foi um cientista apaixonado pelo seu trabalho, com vocação naturalista, mas que também adquiriu uma enorme curiosidade por todos os assuntos vinculados com a população do Brasil. Cultivou vínculos institucionais, em primeiro lugar com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual foi membro correspondente, mas também com inúmeros intelectuais, cientistas e políticos brasileiros. Sim, Martius quis entender e explicar o Brasil, um país para o qual via uma fabulosa perspectiva de futuro.


E o que é possível dizer sobre a qualidade do Martins artista, desenhista da flora brasileira?

Embora Spix e Martius tenham pedido com insistência um desenhista, nunca chegaram a contar com esse profissional na equipe. De fato, toda a documentação visual foi feita pelos dois em rota, sendo que Martius é autor da maior parte dos desenhos.
Isso foi possível porque os dois bávaros tiveram uma educação ilustrada, na qual a prática das artes ocupava um lugar relevante.

Qual o legado de Martius para o Brasil?

Na perspectiva histórica, a obra de Spix e, sobretudo, a de Martius nos legou, em primeiro lugar, abundantes materiais para o conhecimento da natureza e dos povos do Brasil no início dos Oitocentos. Mas, além disto, Martius levou adiante trabalhos de sistematização no campo da botânica, que lhe permitiram definir o que hoje chamamos de biomas, os seus ;Reinos de Flora;, estabelecendo uma caraterização do espaço natural que até hoje conserva validade na descrição do território do Brasil. E no campo dos estudos linguísticos e etnográficos, a classificação que Martius fez das etnias do Brasil trouxe contribuições que até os nossos dias são reconhecidas pelos especialistas.
Mas se Martius é muito importante para o Brasil, sem a menor dúvida, o Brasil certamente foi importantíssismo para Martius: foi toda a sua vida.

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