Severino Francisco
postado em 03/03/2019 07:15
Desde o final da década de 1970, um personagem misterioso paira sobre o carnaval da cidade: Charles Preto, presidente ditador vitalício e plenipotenciário do Pacotão, o mais famoso bloco da cidade. Charles Preto é candango da cabeça aos sapatos e surgiu em 1979 para satirizar o então diretor do Detur (Departamento de Turismo do DF), Carlos Black, que quis enquadrar o Pacotão. O mais divertido era que Carlos Black nunca desconfiou que era Charles Preto.
Ele é uma entidade fictícia, meio real e muito surreal, que se tornou um dos grandes e míticos personagens do carnaval candango. Incomodou o governo militar e a todos os governos com as tiradas certeiras, as declarações bombásticas e as notas oficiais patafísicas sobre temas do debate político nacional e internacional: ;Os maiores humoristas do Brasil estão na Esplanada dos Ministérios;, decretava, em sentença de plena atualidade.
Chegou a receber ameaças de ação judicial da parte do secretário de imprensa do governo José Sarney, incomodado com a marchinha Je Vous Salue Marly, gozação com a censura ao filme Je Vous Salue Mary, do francês Jean-Luc Godard. Polêmico, anárquico e debochado, não deixava pedra sobre pedra do absurdo brasileiro. Durante muito tempo, muitos acreditavam que Charles ele era uma pessoa com existência física; mas ele é uma ficção, quer dizer, só tem existência patafísica. Segundo Alfred Jarry, criador do conceito, a patafísica é a ciência das soluções imaginárias.
Mas, vamos à história do nascimento de Charles Preto. Em 1979, o diretor do Detur, Carlos Black, implicou com o trajeto livre e anárquico e errático do Pacotão. O bloco partia do Chorão (304 Norte), atravessava um viaduto, chegava à W3 Norte e evoluía pela W3 Sul até o bar Toca (403 Sul). Black determinou que os pacoteiros deveriam desfilar na W3 Sul, passarela oficial da folia, no sentido da Rodoviária.
Era tudo que o Pacotão precisava para contra-atacar com humor e a imaginação. Como diz o filósofo Millôr Fernandes, a mordaça aumenta a mordacidade. Em uma conversa no Clube de Imprensa, o chamado Politburo, núcleo de direção do grupo de foliões, decidiu que o presidente do bloco teria de se posicionar. Mas, qual presidente, se o bloco se apresentava como Sociedade Armorial Patafísica Rusticana, o mais desorganizado do Brasil? Se não um presidente, era preciso inventar na hora.
Cenas da memória
E de uma conversa entre os jornalistas Carlão e Claudio Lysias nasceu Charles Preto, ditador plenipotenciário e vitalício do Pacotão, personagem fictício que se transformou em um mito candango. Depois de algum incidente, as declarações de sua excelência eram aguardadas com ansiedade. Tudo é meio incerto quando se trata de Charles Preto.
Mas o jornalista Lobão, um dos fundadores do Pacotão, tem gravada na memória as cenas no Clube da Imprensa e nas mesas do bar Chorão (304 Norte), onde tudo surgiu: ;O dono do Chorão, Arthur, era jornalista. Ele colocou o bar à disposição. Em uma das rodas, o Claudio Lysias conversava com o Carlão, que tinha passado uns tempos no Recife. Por isso, veio o nome Sociedade Armorial Rusticana. O Lysias disse: Carlos Black pode ser Charles Preto. E o mais engraçado é que o Carlos Black jamais desconfiou que Charles Preto era ele próprio;, brinca Lobão.
Rapidamente, Charles Preto tornou-se muito popular e uma das maiores atrações do carnaval candango. O impacto da presença dele se estendia, inclusive, para a redação do Correio, onde os fundadores Fernando Lemos, Claudio Lysias, Joca, Lobão e Carlão costumavam pedir aos jornalistas iniciantes, os focas, que entrevistassem Charles Preto e o trouxessem até o SIG para tirar fotos, lembra Moacir, o Moa, um dos criadores do Pacotão: ;O mais engraçado é que dávamos entrevistas coletivas em nome de Charles Preto. As frases dele viravam faixas do Pacotão, pintadas no Clube da Imprensa. O Pacotão nasceu como paródia do chamado Pacote de Abril, assinado pelo general Ernesto Geisel. Era um bloco político;.
O crescimento do prestígio do personagem criou uma série de situações embaraçosas para a cúpula do Pacotão. Cada um dos integrantes tinha contatos com veículos da imprensa. Todos queriam entrevistar Charles Preto ao vivo. Jornalistas de outros estados falavam do personagem como se ele, de fato, existisse.
Certo dia, a TV Bandeirantes solicitou uma entrevista ao vivo. Os fundadores do bloco toparam. Marcaram em um boteco, colocaram um paletó em uma cadeira e uma jaqueta no espaldar, lembra Lobão: ;Aí, a gente dizia: ele estava sentando ali, mas teve de sair porque foi chamado para uma reunião importantíssima em algum ministério ou no Congresso Nacional. Deixou até o boné. Como se ele circulasse em altas esferas. A gente dava a desculpa, ele não pôde vir, mas deixou uma nota, que a gente havia escrito antes da entrevista. Mas fizemos também gravações do Charles Preto para o DF TV e para a TV Bandeirantes, em que ele aparece de costas;.
Situações tensas
Moa lembra de dois episódios tensos do Pacotão que tinham como alvo o ditador plenipotenciário do bloco. Durante o governo de Aimé Lamaison, os jornalistas fundadores do bloco receberam um recado do FMI que não iriam se meter com o Pacotão, mas pediam que não se desrespeitasse a família do presidente Guilherme Figueiredo. O Pacotão respeitou o pedido, pois era um bloco que não ofendia ninguém, só interpretava a indignação nacional, comenta Moa: ;Era impressionante o que tinha de agentes disfarçados infiltrados no desfile do bloco. A turma do desfile ia ficando bêbada e o pessoal roubava as faixas. De repente, a gente percebia que as faixas haviam sumido;.
E, durante o governo de José Sarney, o Pacotão lançou o enredo, Je Vous Salous Marli, sátira à proibição do filme Je Vous Salous Mary, de Jean-Luc Godard. Fernando César Mesquita, porta-voz de Sarney, ameaçou processar o suposto responsável pelo bloco, Charles Preto: ;Charles Preto soltou uma nota oficial;, conta Moa: ;O governo governa e o Pacotão carnavaliza o carnaval;;.
O Pacotão gravou um disco com várias marchinhas, com um encarte que registra várias frases de Charles Preto que se transformaram em faixas do bloco, conta Lobão. ;O Carlão apareceu com essa ideia. Arrumou os músicos, fomos resolver alguma coisa no Radiocenter e encontramos o Madrigal de Brasília, que faz canto religioso e com voz impostada. Estavam ensaiando, o Carlão convidou os caras para fazer o vocal do disco do Pacotão e eles toparam na hora. Tem algo estranhíssimo no disco: são os caras do Madrigal;, conta Lobão.
O personagem Charles Preto aparece de vez em quando, mas viveu o ápice de 1982 e 1985. Se estivesse atuante nos dias de hoje, o ditador plenipotenciário do Pacotão não teria problemas para debochar, observa Lobão: ;Hoje, não precisava fazer nada. Era só anotar o que eles faziam. Desde aquela época, ele já dizia que os maiores humoristas do Brasil estavam na Esplanada dos Ministérios. Como dizia Nelson Rodrigues, é preciso indignar-se. O homem que não se indigna não merece respeito;.
O libertário
Frases de faixas do Pacotão atribuídas a Charles Preto:
Abre e arrebenta
; (Alusão à frase do presidente João Figueiredo: ;Eu prendo e arrebento quem for contra a abertura)
Estamos com um Pires na mão
; (Referência ao então ministro do Exército, general Pires, aquele que o presidente Figueiredo sempre ameaçava chamar em momentos de crise
Leitão ao molho alemão
; Homenagem ao chefe de gabinete do presidente Ernesto Geisel
Nini para o SLU
; Alusão ao ex-chefe da Agência Central do SNI e ex-comandante do militar do Planato, general Newton Cruz, mais conhecido pelo apelido de Nini