Diversão e Arte

Carlos Lyra comemora 60 anos de carreira com o disco 'Além da bossa'

O álbum reúne 15 faixas dos mais diversificados estilos

Irlam Rocha Lima
postado em 31/03/2019 06:30
Marcos Valle, Roberto Menescal, Carlos Lyra e João Donato: uma vida de grandes parcerias
Aos 85 anos, mais de seis décadas de carreira, Carlos Lyra, um dos nomes mais representativos da Bossa Nova, se mantém em plena atividade, compondo, fazendo shows e regravando clássicos de sua obra. Há 25 anos sem lançar um disco autoral, ele chega ao mercado com Além da bossa, álbum com 15 faixas nas quais registrou canções de estilos diversos ; embora prevaleça o bom e velho sambalanço ; compostas em diferentes períodos.

Para quatro delas, o requintado letrista criou também a melodia. As outras resultam de parcerias e com alguns dos mais importantes compositores brasileiros: João Donato, Marcos Valle, Joyce Moreno, Paulo César Pinheiro, Ronaldo Bastos, além do amigo Daltony Nóbrega e do sobrinho Cláudio Lyra. Ele fez mais, ao musicar poemas de ninguém menos que os escritores brasileiros Machado de Assis e Castro Alves e do poeta e dramaturgo espanhol Lope de Veiga.

Com produção executiva de Magda Botafogo e produção e direção musical de Alex Moreira, Além da Bossa traz arranjos dos consagrados Dori Caymmi, Antônio Adolfo. Nos acompanhamentos, Lyra tem ao seu lado músicos do primeiro time, entre eles Jaques Morelembaum (cello), Antônio Adolfo (piano) Dirceu Leite (sax, flauta e clarinete), Jessé Sadoc (trompete e flugel), Flávio Mendes (violão), Marcelo Caldi (acordeon) e o brasiliense Adriano Giffoni (baixo).

Como é chegar à plena maturidade compondo, fazendo shows, lançando disco?
É me sentir vivo. A idade nunca deve ser um parâmetro para a pessoa se aposentar. Enquanto ela tiver energia para produzir, criatividade e saúde, ela deve continuar trabalhando. O artista, principalmente, vive de aplausos e reconhecimentos em geral por suas atividades, seja em shows, peças, lançamento de discos. Eu nunca me cobrei. Nunca me obriguei a compor. Quando a música nasce, é de parto natural. E faço isso com imenso prazer.

Quais os momentos que considera mais marcantes em 65 anos de carreira?
Tive uma vida profissional muito rica. Ter minha música Menina gravada pela Sylvia Telles, em 1955 num single, com Foi a noite, do Tom, do outro lado, foi um grande debut e por causa dessa gravação conheci o Tom. No ano seguinte, Os Cariocas gravavam minha música Criticando, com um arranjo sensacional. Senti-me compositor. E ainda estava no colégio! Tive três músicas minhas gravadas pelo João Gilberto no LP Chega de Saudade, que é o marco da Bossa Nova. Gravar e lançar meu primeiro LP, pela Philips, foi uma grande surpresa, pois até então não me via cantando. Em 1960, ganho Vinicius de Moraes como parceiro. Talvez seja esse o momento mais rico de toda minha careira. Depois, veio o Concerto do Carnegie Hall, a peça Pobre Menina Rica, as músicas premiadas nos filmes do Joaquim Pedro de Andrade, as turnês pelo mundo com Stan Getz, o show que celebrou meus 50 anos de carreira, produzido por minha mulher, com DVD da Biscoito Fino e agora o lançamento desse CD. Fiz do jeito que queria, com vários amigos convidados, e que considero o melhor de toda minha carreira. O resultado me deixou muito feliz!

Além de Vinicius de Moraes, seu principal parceiro, quem mais ficou guardado em sua memória afetiva e por quê?
Ronaldo Bôscoli. Ele era genial. Um jornalista que escrevia letras de uma maneira diferente, muitas vezes sem artigos. Fora a relação de escrever comigo, ouvindo a melodia e escrevendo o verso e me perguntando se encaixava. Aquela parceria real! E por mais que nossa relação fosse difícil, pois dois bicudos não se beijam. Nós gostávamos, respeitávamos e apreciávamos um ao outro.

O que a bossa nova representou?
Ser um dos compositores que criou um gênero musical e que fez com que o mundo prestasse atenção na música brasileira, é um feito e tanto. Ela representou a abertura de uma carreira e um mar de possibilidades, mas nunca me deixei engessar por esse rótulo. Sempre busquei outros caminhos que não o do samba-bossa. Bossa Nova, pra mim, é uma maneira de compor com melodias elaboradas, harmonias sofisticadas e letras coloquiais e pra cima. Tudo isso buscando sempre a simplicidade. E isso independe do ritmo que você escolhe pra sua música. Bossa Nova não é necessariamente a batida de violão do João Gilberto. Ela é um marco e foi essencial, mas não é só isso.

Além da bossa amplia o seu universo musical. Esta é a proposta básica do álbum?
A proposta desse álbum é mostrar que posso passear por diversos ritmos e inspirações que não sejam o que a mídia definiu como Bossa Nova. Sinto-me além da bossa. Sempre com a excelência com a qual nos determinamos a construí-la, mas me libertei para seguir outros caminhos e quis, com esse álbum, poder demonstrar isso.

Entre os parceiros, há os consagrados João Donato, Marcos Valle, Antônio Adolfo, Joyce, Paulo César Pinheiro, Ronaldo Bastos; e outros como Daltony Nóbrega e Cláudio Lyra. Como foi reuni-los e trazê-los para esse projeto?
São os parceiros com quem tenho tido convívio direto. Gravamos juntos, um no disco do outro, participamos um do show do outro, frequentamos um a casa do outro, saímos para jantar... Então, foi muito natural convidá-los para participar desse álbum que celebra meus 65 anos de carreira. Daltony Nóbrega é um amigo muito antigo, mineiro de Juiz de Fora e que conheci quando era diretor musical da TV Globo, no fim da década de 1970. Depois, se mudou pra Band TV em São Paulo e vive lá desde então. Sempre que vou a São Paulo nos encontramos. É um grande letrista e foi exatamente ele que escolhi para encomendar a letra título do álbum. Só enviei o título e ele me enviou essa pérola. Cláudio Lyra é meu sobrinho e compositor como eu. Faz suas próprias letras e músicas. Chegou-me com essa letra que eu musiquei na hora e o convidei para fazer o arranjo, pois ele estava estudando orquestração com o maestro Vittor Santos. Então, foi mesmo como um desafio e ele respondeu de maneira espetacular. Muito orgulho! Como você pode ver, esse álbum reúne as pessoas do meu convívio direto e foi feito num clima de muito carinho e muito cuidado da parte de cada um, desde os músicos até o produtor Alex Moreira que foi quem me incitou a gravar e abraçou o projeto com total dedicação.

Atribui que importância ao suporte que lhe foi dado por Magda Botafogo e Alex Moreira, os produtores do CD?
Esse álbum não existiria sem eles. Os dois fizeram um complô pra me envolver e quando vi já estava gravando as faixas que a Magda havia mostrado ao Alex. Todas!! Alex é um tremendo produtor musical e me conhece. Só gravo com ele como engenheiro de gravação, desde 1994. Ele sempre mixa tudo que eu gravo. Ele sabe o que eu gosto. São 25 anos de amizade, respeito e carinho. Esse álbum contempla essa efeméride. Todas as ideias desse álbum, que eu chamo de geniais, foram dadas por ele. Estamos comemorando nossa parceria. A Magda é responsável pelo garimpo do repertório e por tornar possível as ideias do Alex. É como o gênio da lâmpada.

Pobre menina rica, E no entanto é preciso cantar e Herói do medo foram discos lançados no período da ditadura militar. Como é lançar o Além da bossa em tempos como os de agora?
Estou num período da minha vida em que, olhando pra trás, vi que fiz tudo que era possível em termos de denúncia e resistência ao autoritarismo. Fiquei no autoexílio de 1964 a 1976 com um breve retorno entre 1971 e 1974. Convivo com uma dor lombar desde 1;. de abril de 1964. Hoje, resolvi não me envenenar com as notícias. Não que me aliene, mas adotei a postura de não me exaltar nem de focar naquilo que não posso mudar. Estou com 85 anos e quero ser feliz. Gravar esse álbum me levou à felicidade, desde o primeiro dia de gravação até agora. Então espero que as pessoas que o ouçam se sintam assim mais leves e que ele sirva para dar um alento nesses tempos difíceis.

Além da Bossa
CD de Carlos Lyra com 15 faixas. Produção independente. Preço sugerido: 34,90.

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