Nahima Maciel
postado em 03/04/2019 06:10
Em Ovo, um inseto estrangeiro chega a uma comunidade na qual não é bem recebido. A condição de estranho não ajuda. Para completar, ele carrega o tal ovo, um objeto que atiça a curiosidade de todos ao redor. Durante pouco mais de duas horas, boa parte da história vai girar em torno da aceitação desse novo membro e do enigma representado pelo objeto que carrega. Por isso, Deborah Colker, diretora do espetáculo do Cirque du Soleil, que entra em cartaz em Brasília na sexta, acredita que a criação envelheceu bem. Ou não envelheceu. Ovo estreou em 2009, mas é extremamente atual.
Deborah acompanhou a trajetória do espetáculo até 2012. No ano passado, foi ver uma apresentação no Royal Albert Hall, em Londres, no formato de arena. ;Em 2016 passou para arena, mas ele estreou como tenda. Desde então passou a ser em ginásios e fiz algumas alterações, botei projeção, um monte de coisas. O primeiro lugar que vi transformado em arena foi no Royal. Foi alucinante. E revi agora, no Rio de Janeiro, que foi bacana por estar na minha cidade;, conta. ;São tantos cases, uma quantidade de equipamento, parece um show dos Stones. É pop.;
[SAIBAMAIS]Quando foi convidada por Guy Laliberté, um dos fundadores do Cirque do Soleil, para criar o espetáculo, há 10 anos, Deborah recebeu duas instruções: primeiro, teria que ser uma criação para públicos de todas as idades e, segundo, deveria ter estofo para ficar, pelo menos, 15 anos em cartaz. Ela brincou que mal sabia se, depois desse tempo todo, estaria viva. Guy avisou: ;Você não sei, mas o espetáculo vai;. ;Tenho a sensação de que aquilo que não te mata te fortalece;, avalia a coreógrafa. Durante o trabalho com a equipe do Cirque, ela aprendeu muito, se desafiou várias vezes e, aos poucos, deixou as fronteiras do circo serem contaminadas por seu modo de pensar.
Preço da arte
Na época, recebeu críticas de que estaria se vendendo ao mercado do showbiz. ;O que aprendi com tudo isso é que cada vez percebo mais que essa artista que sou vem de dentro pra fora. Acredito muito na assinatura de cada um, e Deborah Colker, só tem eu. O Cirque é uma fábrica, uma instituição. Agora, essa maneira de criar, de pensar, de fazer, é do jeito que sou. Acredito cada vez mais nessa autenticidade;, diz. Agora que o espetáculo vem pela primeira vez ao Brasil ; Ovo já passou por Belo Horizonte, pelo Rio de Janeiro e, de Brasília, vai para São Paulo ;, ela está contente. Nem a mãe, de 84 anos, nem o irmão haviam visto o trabalho. Na semana passada, ela levou os 14 bailarinos da Cia. de Dança Deborah Colker para assistir.
;Criticada a gente sempre é. Quando fiz a parede, fui criticada, disseram que não era dança, era esporte. Imagina; Você, como artista, sua obrigação é a inquietação, buscar novas leis, subverter ordens. Estou muito feliz com esse espetáculo, que já dura 10 anos pelo mundo inteiro;, garante.
De certa forma, Ovo trata de questões muito contemporâneas. Na condição de estrangeiro, o protagonista passa por todas as etapas de estranhamento na tentativa de adaptação e acolhimento social. Além disso, Deborah coloca em cena o foco na importância da biodiversidade para a sobrevivência de todas as espécies. Todos os personagens são insetos e, no roteiro da coreógrafa, há espaço para se falar da proteção à natureza, do ciclo da vida e da importância de todos os animais na flora e na fauna. ;Acho muito atual essa coisa do estrangeiro rejeitado, do amor que é capaz de ultrapassar fronteiras, do enigma. Eu humanizei esses insetos, dei a eles uma vida de afeto e dramaturgia;, avisa.
Para Deborah, há também um significado muito pessoal nesse enredo que fala de aceitação. Há oito anos, pouco depois de criar Ovo, nascia Theo, o neto da coreógrafa. Nos primeiros dias de vida, o bebê foi diagnosticado com uma disfunção genética rara que provoca feridas na pele. Desde então, Deborah conta, cada minuto do dia é uma luta contra os efeitos provocados pela mutação.
;As duas coisas vieram juntas, um espetáculo que tem um sucesso há dez anos e uma história complicada de uma mutação genética, de aceitação, que cientificamente é uma luta. É assim. A vida te mostra uma coisa e outra. E o Theo, hoje, me move, é meu caminho, minha nova pele, meu cão sem plumas. Só tenho a agradecer ao Ovo e ao Theo. Aprendo todo dia. É uma luta diária. Dele e de muitas crianças;, diz Deborah.
ENTREVISTA / Deborah Colker
Você acha que Ovo envelheceu bem?
Ele ainda está jovem. Não considero que envelheceu. Esses insetos são destemidos, decididos, irreverentes, cheios de energia, movimento e graciosidade. Dá para olhar para o Ovo e achar que é uma comunidade de insetos aprontando. E os figurinos são lindos. É uma joia. Acho que tem uma atemporalidade e, ao mesmo tempo, é um espetáculo que tem um tema muito contemporâneo. A gente está falando de natureza, de biodiversidade, do ciclo da vida, de proteger a natureza, da importância dos animais que são, talvez, os menores da cadeia toda. Nos perturbam muito, como os mosquitos, mas são fundamentais. A gente sabe disso.
O que representa o ovo que o inseto traz com ele?
É um enigma. Um enigma do conhecimento, do desconhecido, daquilo que te move. É a energia, a ciência, a fé. Quem explica por que a gente tem fé? Ninguém, até hoje. Ou a morte, que todos sabemos que encontraremos? A gente está falando de todos esses conceitos porque a morte, a gente tem como um conceito. E esse inseto estrangeiro que chega é rejeitado pela comunidade, como os exilados, os refugiados, como as pessoas diferentes, e isso é algo que a humanidade tem que rever, tem que aceitar as diferenças, a mutação, os estrangeiros. Ele é rejeitado e roubam o ovo dele. Ele passa o dia, 24h, tentando resgatar o ovo e acaba se apaixonando por uma joaninha solitária. Aí a comunidade passa a aceitá-lo.
Você diz que é seu espetáculo mais pop. Por quê?
Porque é um espetáculo de circo. O pop fala sobre a superfície, é pegar algo do cotidiano, ordinário, que pode fazer parte da sua vida. Não se dispõe à profundidade, a questionamentos. Não trata daquilo que é importante, do cotidiano, das cores da sua vida, do entretenimento. Mas não é porque é entretenimento que deixa de ser arte. E o pop fala muito disso. Sou a mesma pessoa que fez o espetáculo Cão sem plumas (inspirado no poema de João Cabral de Melo Neto), que é o fundo mais fundo, o fundo mais profundo, que fala sobre a riqueza e a tragédia.
Como foi trabalhar com uma companhia que tem muitos recursos tecnológicos e financeiros?
Foi incrível. Respeito muito essa fábrica, talvez a maior fábrica de espetáculos do mundo. Eles trabalham com gente com a maior qualidade técnica. O Ovo é um espetáculo do Cirque, mas é também um espetáculo da Deborah Colker. Às vezes, no Brasil, você fica chateado com umas coisas que são absurdamente caras, a gente não pode usar materiais, tecnologias. Coisas que poderia usar, mas que têm uma taxação enorme, impostos e tal. E quando você vê que é possível, não faz sentido, num mundo com internet, não trabalhar dessa maneira, que seria a maneira correta e com mais qualidade. Isso foi algo que aprendi: é possível qualidade de produção e tecnologia. E isso tem a ver com dinheiro, obviamente, mas com conhecimento também, com querer fazer as coisas como tem que ser feito.
Os recursos financeiros ajudam?
Dinheiro não é o oxigênio da arte, mas é muito bem-vindo. Não tenho maior problema com isso, mas não é minha motivação. Não fiz a abertura das Olimpíadas, também com budget diferente do meu? Trabalho com muito dinheiro, com pouco dinheiro. Minha imaginação é movida pela minha inquietação. Acho que tive ali possibilidades de tecnologia de circo e de cênicas, um cenário, um chão que pode se mover, os grides pra poder fazer os aéreos. Isso tudo é uma possibilidade incrível e um custo altíssimo. E pela própria gênese do trabalho, os aéreos, a altura dos aéreos. A parede é minha parede, só que essa é cinco vezes maior, acoplei trampolins, power track. Fiz para o circo.
Ovo
Espetáculo do Cirque du Soleil, com coreografia de Deborah Colker. De 5 a 13 de abril, no Ginásio Nilson Nelson. Terça e quarta, às 21h, quinta e sexta, às 17h e às 21h, sábado, às 14h* e 18h* / às 17h e às 21h, e domingo, às 16h e às 20h *apenas em datas específicas. Classificação inidcativa livre. Menores de 12 anos de idade somente acompanhados dos pais ou responsáveis legais. Sujeito à alteração por decisão Judicial. Ingressos: setor 3, R$ 260 e R$ 130 (meia), setor 2, R$ 320 e R$ 160 (meia), setor 1, R$ 440 e R$ 220 (meia) e premium R$ 550 e R$ 275 (meia).