Diversão e Arte

Discos clássicos de Cátia de França são relançados pela Sony Music

Da mesma geração de Zé Ramalho e Vital Farias, a artista mantém vivo o ritmo nordestino sem perder a contemporaneidade

Irlam Rocha Lima
postado em 10/04/2019 06:00
Artista Cátia de FrançaElba Ramalho, Zé Ramalho, Vital Farias e Marcelo Melo são artistas paraibanos que, a partir da década de 1970, passaram a fazer parte da história da música popular brasileira. Um outro nome de destaque daquela geração é o de Cátia de França, que depois de um início auspicioso caiu no ostracismo no ;sul maravilha;, embora seja autora de uma obra cultuada por muitos.

Parte da obra dessa cantora e compositora, cujo nome de batismo é Catarina Maria França Carneiro, foi resgatado. Os álbuns clássicos 20 palavras ao redor do Sol e Estilhaços foram disponibilizados pela Sony Music nas plataformas digitais. Os discos, com nova masterização assinada por Luigi Hofer e Carlos Savalla, trazem canções com letras inspiradas em poemas e textos dos mestres da literatura brasileira João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.

Incentivada pela mãe, Dona Adélia, Cátia de França, ainda menina, passou a ter familiaridade com instrumentos como piano, sanfona e violão, flauta e percussão em João Pessoa. Antes de se radicar no Rio de Janeiro, foi professora de música, participou de festivais na Paraíba e em outros estados do Nordeste, e excursionou pela Europa com um grupo folclórico. Bem antes do movimento LGBTQ ganhar evidência, ela havia assumido a sua homossexualidade.

[SAIBAMAIS]Além dos discos citados, Cátia lançou outros três: Feliz demais (1986), Avatar (1996) e Hóspede da natureza (2016). Ela enveredou-se também pelo mundo da literatura ao escrever os livros Zumbi em cordel, Falando da natureza naturalmente e Manual da sobrevivência. Há 14 anos, mora em São Pedro da Serra, região rural Distrito de Nova Friburgo (RJ). Ali, aos 72 anos, criou um centro cultural e dá continuidade ao seu trabalho artístico.

Entrevista/ Cátia de França

Como foi o seu início na música?

Aos 12 anos, comecei a receber aula de piano erudito na Escola Antenor Navarro, onde estudei até os 15 anos. Cheguei a fazer apresentação no Teatro Santa Rosa, em João Pessoa. Logo depois, morando em Belém de Maria, no interior de Pernambuco, fiz aulas de violão com um professor particular. Em 1966, de volta a João Pessoa, me aventurei nas composições próprias, em parceria com o jornalista Diógenes Brayner. Passei a ter admiração pela poesia e literatura, que viriam a ser marcas da minha música a partir dali.

Na prática, qual foi o primeiro sucesso?

Em 1967, influenciada por Gilberto Gil, Jorge Ben e Baden Powell, participei de um festival com a música Mariano e fui vencedora. A canção foi registrada num compacto, pelo selo Rozenblit. Por conta disso, participei de programa na TV Jornal do Comércio, em Recife. Mais ou menos na mesma época, fiz uma turnê por Portugal e Espanha com um grupo folclórico, do qual Elba Ramalho também fazia parte.

O que a levou a se mudar para o Rio?

Em meados dos anos 1970, Zé Ramalho e Elba Ramalho haviam migrado para o Rio, e aí vi a possibilidade de me juntar a eles. Quando cheguei, Elba me chamou para integrar o grupo Chegança, criado e dirigido por Luis Mendonça, que contava também com Tânia Alves e Tonico Pereira. Bancado pelo Serviço Nacional de Teatro, o grupo viajou pelo Brasil e, inclusive, passamos por Brasília. O texto da peça que encenávamos, com essência política, mas com base na cultura popular e era escrito em cordel.

Algum outro fato importante marcou a chegada ao Rio?

Sim. Em 1978, O Zé Ramalho ia gravar o LP Avohai e me convidou para tocar sanfona, percussão e fazer vocal na banda dele. Para lançar o disco, ele fez uma turnê pelo país, e eu o acompanhei. No ano seguinte, o Zé produziu o meu disco de estreia, 20 palavras ao redor do Sol, uma colcha de ritmos e linguagens.

Qual foi sua fonte de inspiração para esse primeiro trabalho fonográfico?

Eu me inspirei na obra literária de João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos e do meu conterrâneo José Lins do Rego, para costurar uma verdadeira colcha de ritmos e linguagens. Musicalmente colaboraram Xangai, Israel Semente e Sérgio Natureza. Criei todas as melodias. Zé Ramalho fez todas as violas e contei, entre os músicos de apoio, com Sivuca, Dominguinhos e Severo na sanfona; Chico Batera e Sérgio Boré na percussão; Bezerra da Silva, no berimbau; Lulu Santos na guitarra; Elba e Amelinha nos vocais.


Nesse LP, que em 2019 comemora 40 anos, quais as músicas que se destacaram?

O 20 palavras ao redor do Sol, com 12 faixas, que saiu pela CBS (atual Sony Music), teve ótima repercussão. Duas músicas fizeram muito sucesso, Cucucaia e O coito das araras, que depois foram regravadas por Ela e Amelinha.

Em seguida veio o Estilhaços com músicas criadas sobre a obra de Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. Esse é o seu disco mais cultuado?

É um trabalho que recebeu ótimas críticas. Houve até quem o ligasse à psicodelia brasileira. Chamaram a atenção músicas como Meu boi surubim, Ponta do Seixas e Porque é da natureza. Por conta desse disco, tive o privilégio de conhecer pessoalmente João Cabral, a quem fui apresentada pela filha dele. Ela é cineasta e, na trilha sonora de um dos filmes que dirigiu, tinha uma música minha.

Com o resgate desses dois discos, disponibilizados nas plataformas digitais, pessoas das novas gerações vão ter contato com sua obra. Que expectativa forma em relação a isso?

Creio que são trabalhos consistentes e atemporais, alicerçados na minha base literária, algo que me foi passado por minha mãe, Dona Adélia, que foi uma educadora na Paraíba. Gostaria muito de ser ouvida pelas novas gerações. Mas não parei no tempo. Em 2016 lancei pelo projeto Natura Musical o CD Hóspede da natureza, de músicas inéditas de temática ecológica. Atenta à poesia de Manoel de Barros, continuo compondo, criando projetos, distante do caos urbano, na placidez serrana, na zona rural de Nova Friburgo, onde criei e mantenho um centro cultural.


O lançamento dos dois discos vai proporcionar uma turnê, para divulgá-los ao vivo?

A ideia é relançá-los também no formato físico e há a possibilidade de fazer alguns shows pelo Brasil. Quero voltar a Brasília, onde me apresentei em lugares, como no Feitiço Mineiro, Balaio Café, Fulô do Sertão e na Feira do Guará, acompanhada pelo Tiago Mória.

O movimento LGBTQ atualmente tem maior representatividade. Em outros tempos havia um preconceito maior em relação à sexualidade e identidade de gênero. Como você percebe essa mudança?

Eu era filha única. Até os 15 anos tinha medo de ir para o inferno, mas usava bota, cabelo curto e calça faroeste. Frequentava a churrascaria Bambu, no centro de João Pessoa, onde a clientela era formada por artistas, jornalistas, políticos, mas havia predominância de gays. Não empunhava bandeira, mas acredito que as pessoas não tinham nenhuma dúvida quanto a minha sexualidade. Hoje em dia, ainda há preconceito, mas também há uma maior conscientização.

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