Diversão e Arte

O adeus a Andrade Junior, o mestre do improviso do cinema

O ator Andrade Junior morreu repentinamente, aos 73 anos. Conhecido por não decorar as falas dos filmes que fazia, ele deixará saudades pelo jeito irreverente e cheio de energia. Em cinco décadas, esteve em mais de 100 produções

Adriana Izel
postado em 05/05/2019 08:00
Ator Andrade Junior
O cinema brasiliense perdeu parte de seu brilho na madrugada de ontem. O ator Argemiro Gomes de Andrade Junior, mais conhecido como Andrade Junior, morreu, aos 73 anos, após sofrer uma parada cardíaca em casa, em Sobradinho. O falecimento surpreendeu a todos, já que o artista não sofria de nenhum problema de saúde aparente e continuava a ser figura constante em projetos cinematográficos. ;Eu não conseguia imaginar meu pai velhinho, debilitado... Hoje sei o porquê! Porque esse não era mesmo para ser o seu caminho. Sempre com muita energia, sua partida não poderia ser outra além dessa, repentina;, definiu Cássia Andrade, filha do artista e uma das primeiras a confirmar a morte dele nas redes sociais.

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O corpo do artista foi velado na tarde de ontem no hall do Cine Brasília, na Asa Sul, local em que esteve inúmeras vezes. A cerimônia segue até as 14h deste domingo (5/5) no espaço. O sepultamento será no Cemitério de Sobradinho às 17h.

Cearense radicado em Brasília, Andrade Junior fez carreira nos palcos e nas telonas na cidade. Batia ponto nas edições do Festival de Brasília de Cinema Brasileiro e também em produções cinematográficas candangas. Ao longo de mais de 50 anos de carreira, esteve em 100 filmes, como revelou em entrevista ao Correio, no ano passado. A primeira participação no cinema foi em Vestibular 70, de Vladimir Carvalho. Acumulou prêmios em festivais, para além de Brasília, em locais como Fortaleza, São Luís e João Pessoa.

Esteve em obras premiadas em Natal, Gramado e Florianópolis. Entre as produções mais celebradas de que fez parte, estão Rosinha, de Gui Campos, em que atuou ao lado de João Antônio e Maria Alice Vergueiro e conquistou mais de 40 prêmios em festivais pelo país; A repartição do tempo, de Santiago Dellape, que chegou a circular o Brasil no circuito comercial; Fuga de Natal, outro projeto de Campos, dessa vez, voltado para a exibição na Globo, em 2018; e uma participação em Faroeste caboclo, de Renê Sampaio. Andrade Junior tinha características marcantes e que o fizeram uma lenda em Brasília.

O ator Andrade Junior morreu repentinamente, aos 73 anos. Conhecido por não decorar as falas dos filmes que fazia, ele deixará saudades pelo jeito irreverente e cheio de energia. Em cinco décadas, esteve em mais de 100 produções

Entre elas: a alegria que levava aos sets; o fato de não decorar o texto e trabalhar com o improviso; e o abraço às novas gerações, participando de produções (sejam curtas, sejam longas) universitárias e de cineastas estreantes. ;Somos irmãos. Fizemos muitas coisas juntos. Eu, ele e Gê Martú sempre tivemos essa relação com o cinema universitário. Fizemos muitos primeiros filmes de muitos diretores que estão aí no mercado. Juntos, fizemos mais de uma dezena. Então, foi muita coisa junto, além de uma vida de encontro;, lembra o ator, professor e diretor João Antônio de Lima Esteves.

Perda irreparável

Sobre a morte de Andrade Junior, João Antônio diz: ;Foi uma perda muito grande, pois é o ator com mais horas de set no cinema de Brasília;. Amigo e colega de trabalho, o diretor se lembra do artista em cena. ;Ele sempre teve essa disponibilidade total para o cinema. Nunca perguntou qual era o personagem. Sempre atendia direto todo mundo. E, em cena, era de uma generosidade imensa;, elogia. ;Quantas vezes me deu conselho? Nunca foi um ator de muita preparação, mas ele não precisava se preparar. Estava sempre pronto. Ele tinha um físico para o cinema extraordinário e essa alegria de estar no set;, analisa.

O ator brasiliense André Deca também dividiu a cena com Andrade Junior em algumas oportunidades. Os dois estiveram juntos em Rosinha (2014), Ratão (2010), Meio expediente (2017) ; reexibido ontem na Globo, como homenagem ao artista ; e A repartição do tempo (2016). ;Ele era um cara maravilhoso, incrível, uma pessoa que estava sempre muito feliz e alegre. Todo mundo gostava da presença dele;, comenta. Em relação à figura artística, Deca ainda completa: ;Ele era autodidata, sabia atuar mesmo sem ter estudado. Tinha uma experiência enorme. Essa é uma perda enorme para o cinema de Brasília;.

A atriz Carmem Moretzsohn se lembra do ator como ;uma pessoa superpositiva e alegre; , mesmo sem ter dividido cenas com ele. ;Ele chegava aos sets ou a qualquer lugar sempre com muita alegria, dando aquelas risadas expansivas. Ele tinha dificuldade de decorar o texto, mas fazia disso uma brincadeira, tinha essa máxima. É uma pena perdê-lo;, afirma. Por ter um currículo tão extenso, Andrade Junior deixa uma leva de produções inéditas. Entre as confirmadas, estão Cartório das almas, de Leo Bello, no qual é um dos antagonistas e tem Rosanne Mulholland, Gregório Duvivier e Tonico Pereira no elenco.

Outras são Pureza, longa-metragem de Renato Barbieri, que tem ainda Dira Paes; King Kong en Asunción, de Camilo Cavalcanti; e Enigma, filme de estreia do artista plástico Luis Jungmann Girafa como diretor. ;Tem muita coisa dele ainda inédita. Há um filme, que é o Enigma, que fizemos com o Girafa, em que ele fazia Deus, e eu era um místico à procura de caminhos;, conta João Antônio. André Deca destaca o filme de Camilo Cavalcanti gravado no Paraguai. ;Tinha esse filme muito bacana para ser lançado dele. Ele estava ansioso por King Kong en Asunción. É uma pena que ele não poderá ver o lançamento;, lamenta.

Trajetória

Apesar de ter feito carreira principalmente no cinema, Andrade Junior começou nos palcos de teatro. Aos 17 anos, teve a primeira experiência com artes cênicas, quando estava em Brasília há três anos. Mesmo sem estudar arte a fundo, tornou-se presidente do grêmio estudantil em Sobradinho. À época, participaria de uma peça como assistente de direção. Só que o protagonista do espetáculo desistiu dois dias antes da apresentação e Andrade Junior assumiu o papel. As falas estavam decoradas. ;Só tinha eu, e tinha decorado já, estava ali junto. ;Eu faço;, falei. Foi a primeira vez que fiz. E acho que acostumei;, contou Andrade Junior em entrevista exclusiva ao Correio, em 2010.

Na mesma entrevista, revelou que chegou a Brasília em 1959. Andrade Junior veio com os pais e 10 irmãos no Ceará num voo que durou 12 horas. Mesmo menor de idade, trabalhou na construção do Palácio do Planalto. Nesse período, vendeu revistas no Aeroporto de Brasília. ;Naquele tempo, entrava no avião e vendia lá dentro. Depois, saía. Você podia entrar e sair. Comia, pegava sanduíche...;, explicou. No DF, morou em diferentes locais. Primeiramente no Núcleo Bandeirante, que, à época, se chamava Cidade Livre. Depois viveu na extinta Vila Amauri, que, atualmente está imersa no Lago Paranoá. Em seguida, a família seguiu para Sobradinho, região onde viveu o resto da vida.

A relação com o Distrito Federal foi celebrada em diferentes momentos, como, em 2010, pela Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo (ABCV), e, em 2014, no 3; Curta Brasília ; Festival de curtas-metragens de Brasília, com a exibição do documentário A louca história de Andrade Junior, de Érico Cazarré e Victor Pennington, que retrata a vida do ator com as suas excentricidades, e ainda com a Mostra onipresença: o cinema de Andrade Jr, que teve a projeção de cinco curtas emblemáticos de sua filmografia. Curtas-metragens, inclusive, eram uma paixão de Andrade Junior. ;Todo mundo gosta de curta. Mas não tem a cultura de segurar o curta-metragem nas telas. Eu adoro curta-metragem. O longa, se não for muito bom, durmo na hora. É uma pena que eles veem o curta como um tira-gosto;, lamentava.

Max Valarezo, youtuber, criador do canal de cinema EntrePlanos, foi um dos universitários que tiveram oportunidade de fazer um curta com Andrade Junior. ;Andrade trabalhava com prazer, curtindo cada momento do processo, brincando com a equipe, deleitando-se com a tarefa de interpretar um idoso numa tarde de sábado. E sem ganhar um centavo por isso. Sua habilidade artística e sua simpatia fizeram aquele dia ser uma gravação extremamente fácil e prazerosa;, lembra. ;Alguns meses depois, no Festival de Curtas dos Calouros da Faculdade de Comunicação, ele venceu o prêmio de melhor ator por conta de sua performance em nosso curta-metragem. Por mais que aquele fosse um singelo prêmio por um trabalho universitário, ele fez questão de buscar o troféu, orgulhoso pela vitória;, recorda o jovem.

Repercussão / Confira depoimentos de personalidades sobre a partida do ator

;Sábado amanhece triste em Brasília com a morte do ator Andrade Junior. Onipresente nos filmes, onipresente em nossos corações... Oh, indesejada das gentes, pisa devagar;

Nirton Venancio, diretor

;Deixo aqui minha reverência a essa figura tão genuinamente gentil, de um talento impressionante, alegre e engraçado, que animava qualquer rodinha onde chegava. Você vai fazer falta, véi doido! Boa viagem!”

Gui Campos, diretor

;Acabei de receber a triste notícia da passagem desse querido ator Andrade Junior, o homem que mais fez cinema no DF;

Sérgio Maggio, autor de teatro

;O Andrade Junior deixará todos nós com muitas saudades. A vida é curta e intensa. Perdemos um grande amigo, amigo de tanta gente, um companheiro amoroso, um grande ator. Perdemos a presença feliz do Andrade;

Guilherme Reis, ator e diretor



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