postado em 25/05/2019 04:09
Em princípio, Sumchi ; Uma fábula de amor e aventura, de Amós Oz (Ed. Cia das Letras), é uma ficção dirigida ao público infantojuvenil. No entanto, como toda narrativa literária de qualidade, ela transcende inteiramente a classificação de faixas etárias e pode ser lida tanto por jovens quanto por adultos.
Lemos livros que se apagam em nossa memória rapidamente. O sinal indelével da boa literatura está no fato de gravar em nossa mente personagens de tamanha força expressiva que ameaçam saltar da ficção para a realidade. De uma trama simples, Amós Oz extrai uma narrativa de humanismo tocante, perpassada de reflexões existenciais, surpresas, suspense e sugestões poéticas. Tudo transcorre apenas em um dia.
Sumchi é um garoto fantasioso de 11 anos, animado pelo espírito de aventura, tido na conta de meio maluco e apaixonado por Esti, uma garota da mesma idade. Ele vive em uma Jerusalém ocupada pelos ingleses. A relação do garoto com a menina é um dos pontos altos da novela. O amor floresce da maneira mais improvável.
Ao tomar o café da manhã, ele pronuncia, enquanto mastiga o desjejum, como se fosse um mantra sagrado: ;Esti;. À noite, fechava-se no banheiro e as pessoas da família imaginavam que ;o menino maluco; estivesse brincando com água. No entanto, ele parece aquele personagem do célebre poema de Carlos Drummond de Andrade que escreve o nome da amada com letras de macarrão: ;Mas eu não estava brincando com água, só enchia a pia e escrevia o nome dela na superfície das ondas;.
Não era só na superfície fugidia da água que Sumchi reverenciava a musa. Ele garatujava poemas para ela também em um caderno preto. Nelson Rodrigues afirma que, aos 18 anos, um homem não sabe dizer nem bom-dia para uma mulher. Imagine um garoto de 11 anos, criado nas ruas com garotos bandalhos.
Na impossibilidade de se declarar, Sumchi manifesta o afeto na hora do recreio na escola da maneira mais execrável. Gruda chiclete na linda blusa dela, puxa as suas tranças ou a prende por trás com as mãos. Detalhe: ela o chama de ;nojento; e xinga, mas sem nunca gritar para que ele a solte. Esti chora no recreio e Sumchi chora escondido em casa à noite.
Mas, com muita engenhosidade, Amós Oz entrelaça a trama de amor com a de aventura. O tio de Sumchi é uma presença inspiradora. Na família, não tem uma imagem muito positiva, todos dizem que ele é meio maluco. É precisamente esse traço enternece e leva Sumchi a identificar-se com ele. Na verdade, é fantasioso, generoso, bem-humorado, quixotesco e delirante.
O tio Tsemach vem de Tel Aviv e permeia o cotidiano de Sumchi de pequenas transgressões e cumplicidades inocentes. Acorda o garoto de madrugada para fritarem omelete às escondidas. Além disso, se distingue por mais uma faceta simpática: costumava dar presentes que causavam grande surpresa. E, desta vez, trouxe para o garoto uma bicicleta, que a acende a imaginação e o espírito de aventura de Sumchi e desencadeia uma série de trocas, voluntárias ou impostas, com os amigos.
Em uma série de lances do destino, depois de fugir de casa e mergulhar no desespero é acolhido precisamente na casa de Esti. Como quase sempre acontece na vida, as mulheres revelam uma percepção muito mais sábia e elevada do amor. Esti insinua que tem conhecimento de que Sumchi escreve poemas para uma garota. Sumchi sonha chegar de bicicleta a lugares impossíveis: ;E não existe um lugar assim, terra de Ubangui-Chari, mas é maravilhoso você ter inventado um lugar onde só nós dois vamos estar;, afirma Esti.
Sumchi e Esti chegam ao amor pelos caminhos mais tortuosos e desconcertantes. Com uma linguagem concisa, descarnada e essencial, Amós Oz tece uma fábula a, um só tempo, delicada e contundente sobre o amor, a aventura, as trocas, a ilusão, o amadurecimento e a fugacidade da experiência. Um dia apenas pode mudar completamente a nossa vida.
Sumchi ; Uma fábula de amor e aventura, de Amós Oz
126 páginas/Ed. Cia das Letras