Agência Estado
postado em 28/05/2019 07:10
Gisele Santoro chegou no começo da noite ao Teatro Amazonas, em Manaus. A expressão não escondia um pouco de nervosismo. "Você sabe, quando a ópera estreou eu estava no palco, envolvida com a produção. Desta vez, vou só assistir, e para falar a verdade acho que fico ainda mais ansiosa", ela diz, abrindo um sorriso.
Viúva de Claudio Santoro, Gisele foi a convidada de honra, na noite de domingo, da estreia de Alma. A obra já havia sido apresentada em 1998, também em Manaus, terra natal do compositor. Mas, pouco mais de 20 anos depois, é como se subisse ao palco pela primeira vez - sem cortes e com as revisões feitas pouco antes da morte do autor, descobertas no início deste ano pelo seu filho Alessandro.
"É uma edição nova, com muitas correções de notas, intenções dramáticas, e acréscimos importantes", diz o maestro Marcelo de Jesus, responsável pela direção musical do espetáculo, que integra a programação do Festival Amazonas de Ópera, que encerra esta semana sua 22ª edição. "Foi um trabalho intenso de revisão, de redescoberta do sentido dramática da obra", completa.
O centenário de Santoro (1919-1989) tem permitido uma reavaliação de seu legado. Desde o fim do ano passado, a Orquestra Filarmônica de Goiás está gravando todas as suas sinfonias - e o maestro britânico Neil Thomson, responsável pelo projeto, não esconde a admiração pelas obras que, segundo ele, têm importância, no cenário da música do século 20, comparável à de Dmitri Shostakovich.
No fim de junho, por sua vez, o barítono Paulo Szot vai registrar com o pianista Nahim Marun todas as canções do compositor; e, em todo o Brasil, sua produção musical tem sido programada por orquestras e conjuntos de câmara, revelando um conjunto de obras que vai do nacionalismo à vanguarda mais experimental.
Nesse contexto, o resgate de Alma é um marco importante. A ópera é baseada em texto de Oswald de Andrade, a primeira parte da trilogia Os Condenados. O autor leu trechos do romance na Semana de Arte Moderna, em 1922, provocando grande comoção e dividindo a crítica, tanto pela forma quanto pelo conteúdo.
O enredo é intenso, violento na sua ruptura com a ideia do amor romântico. A prostituta Alma sofre nas mãos do cafetão Mauro, do qual não consegue se distanciar; de outro lado, há o telegrafista João do Carmo, apaixonado por ela, mas incapaz de viver ao seu lado, o que eventualmente o leva ao suicídio.
"Santoro mantém a estrutura fragmentada, quase cinematográfica do romance", afirma Jesus. "Isso é muito interessante do ponto de vista dramático, mas cria uma dificuldade na hora de narrar a história. A cada parágrafo estamos em um lugar diferente, em um tempo diferente, é algo profundamente moderno", explica a diretora cênica Julianna Santos, que criou no palco - apoiada pela brilhante cenografia de Giorgia Massetani - diferentes caixas, planos, que se sobrepõem.
Na montagem manaura, coube à mezzo-soprano Denise de Freitas interpretar o papel-título, em um dos grandes momentos de sua carreira. Alma está quase todo o tempo no palco. "Mas não é só isso. Você interpreta uma cena e, de repente, seis meses se passaram na história. Em questão de segundos, você precisa incorporar uma outra mulher, que naquele tempo passou por mudanças traumáticas, como a morte do filho. Essa capacidade de se adaptar muito rapidamente é fundamental", ela explica.
Do ponto de vista musical, Santoro cria uma partitura que carrega forte caráter experimental, convivendo com outras passagens de um lirismo tocante, como o tema com que a ópera se inicia. Gisele, após a apresentação, conta que a melodia vem de uma canção que o marido escreveu para ela. "Ele então pediu que eu colocasse a letra." E ela ainda se lembra? A voz, baixinha, cantarola. "Meu amor me disse adeus / Foi-se embora e se esqueceu de mim / Ó meu bem, não quer voltar / Ó, por que não quer voltar? / Se a dor de me fazer tão longe assim vai me matar / Meu amor me disse adeus / Vou chorar." E ela então abre um sorriso. "Hoje estou muito feliz."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.