Nahima Maciel
postado em 03/06/2019 06:20
Martinho da Vila costuma planejar o ano que vai chegar no dia 31 de dezembro. No último dia de 2017, ele sentiu a necessidade de escrever sobre o que estava por vir. Já sabia, mais ou menos, que 2018 seria difícil. Não imaginava, porém, tamanha atipicidade. ;Os momentos mais difíceis foram as semanas em que morreu muita gente conhecida, como dona Ivone Lara, dona Maria. Isso é meio chatinho. E teve muito isso durante o ano;, repara o cantor e compositor, que lança, pela Kapulana, 2018 ; Crônicas de um ano atípico.
No total, são 48 textos escritos na proporção de um por semana durante o ano inteiro. ;Pensei ;vou fazer um livro de crônicas do ano, mas não de crônicas normal, que a gente escreve para o jornal, que nem meu último livro;;, explica. Os textos lembram, em muito, um diário com relatos de fatos ocorridos, mas sempre acompanhado de comentários. Martinho conta que não foi difícil escrever. Ele se programou para sentar e escrever toda segunda-feira, de maneira que os fatos da semana recém-terminada ainda estivessem frescos na cabeça. ;Não foi muito difícil, eu lia dois ou três jornais, ficava atento a tudo que estava acontecendo e ia anotando o que mais me sensibilizava, positivamente ou não;, conta o autor, que começou a escrever em 1; de janeiro de 2018.
[SAIBAMAIS]O ano que viu Martinho da Vila completar oito décadas de existência foi também um conjunto de dias complicados. Se começou com as comemorações do aniversário ; pontuado por shows realizados pelos netos Raoni e Dandara e seguido por uma série de homenagens de toda a classe musical ;, os meses que se seguiram carregaram um amargor. Ou foram péssimos, na avaliação do compositor. Em março, o Brasil assistiu ao assassinato de Marielle Franco e, em abril, à prisão de Lula, ;preso injustamente;, na concepção de Martinho.
Em maio, de bom mesmo, só teve a celebração das bodas de prata do casamento com Cléo. ;Junho foi triste;, escreve, lembrando da derrota na Copa, e ;julho passou batido;. ;Setembro começou mal com lamentoso incêndio do Museu Nacional e foi o mais atípico, pois uma raiva incomum tomou conta de muitos corações, e o Bolsonaro foi esfaqueado; avalia. Daí em diante, tudo ficou mais difícil, com eleições em outubro e a revelação dos crimes de João de Deus em dezembro.
A escrita de Martinho é muito simples e direta. Ele não tergiversa muito, reproduz muita coisa lida no noticiário e faz desse material o objeto dos comentários. A música está presente em todo o livro e, eventualmente, há até letras transcritas para ilustrar um comentário. Há um certo otimismo e bastante bom-humor. ;Quando a gente é mal-humorado, vê as coisas só pelo lado ruim;, garante. ;E quando é pessimista, não faz nada. As mudanças que aconteceram no mundo foram feitas por otimistas e positivistas. A gente tem que acreditar. Bandeira da fé, meu disco mais recente, é fé no sentido de ter esperança.;
Todos os textos vêm escritos na terceira pessoa, uma escolha deliberada, porque Martinho sabe que uma das fontes da crônica é a vivência do próprio autor. ;Na crônica tem muita coisa da gente. E minha intenção era informar;, avisa
; TRECHOS DO LIVRO
Balança mas não cai
Passado o carnaval, as notícias políticas nos jornais e nos programas informativos de televisão versavam sobre a condenação do Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Corrupção passiva é um crime previsto no direito penal brasileiro, que consiste no ato do agente público pedir ou receber algum tipo de compensação ilícita em troca de serviços relacionados com a sua atividade pública, e lavagem de dinheiro é o procedimento usado para disfarçar a origem de recursos ilegais quando alguém ganha dinheiro de forma ilícita ; por exemplo, com crimes como tráfico de drogas, contrabando, sequestro e jogo ilegal e, para depositar em bancos, tem de armar estratégias para justificar a origem e, assim, evitar suspeitas da polícia ou da Receita Federal.
Um sítio em Atibaia, em nome de uma empresa, usado para lazer, e um tríplex onde poderia habitar, ambos de origens duvidosas, podem ser gentilezas suspeitas, mas é injusto atribuir ao ex-presidente acúmulo de fortunas que não tem em bancos brasileiros e nem em paraísos fiscais.
; Marielle presente
Não foi possível dormir sossegado. O sono foi várias vezes interrompido com as boas lembranças da festa de aniversário, o que normalmente não faz bem, mas o despertar foi pior. As manchetes dos jornais provocaram uma sensação de vazio, como se o corpo fosse oco:
O DIA ; VEREADORA MARIELLE É ASSASSINADA NO ESTÁCIO
O GLOBO ; LÍDER DA MARÉ, VEREADORA DO PSOL, É ASSASSINADA A TIROS
Esta crônica seria sobre as manchetes dos periódicos de hoje, mas não deu. Baixou um estado de perplexidade e de insegurança. Nos dias seguintes os jornais noticiaram que milhares de pessoas protestaram contra a violência, sem bandeiras partidárias e sem a presença de políticos que, normalmente, aproveitam tais ocasiões. Os primeiros que tentaram foram vaiados e nenhum mais se arvorou.
Um grande sonho
O incrível é que funcionou em todo o Brasil o seu discurso de campanha de Bolsonaro, polêmico e muito contundente.
Negros
1. ;Eu fui num Quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$1 bilhão por ano é gastado com eles.; (Em palestra no Clube Hebraica, abril de 2017).
Estupro
2. ;Fica aí, Maria do Rosário, fica. Há poucos dias, tu me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece. Fica aqui pra ouvir.; (Em discurso na Câmara, em 2003). Ao explicar disse: ;Ela não merece (ser estuprada) porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar porque não merece.;
Coro no filho gay
3. ;O filho se começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro ele muda o comportamento dele. Tá certo? Já ouvi de alguns aqui, olha, ainda bem que levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem.; (Em programa da TV Câmara, novembro de 2010).
Fraquejada
4. ;Fui com os meus três filhos, o outro foi também, foram quatro. Eu tenho o quinto também, o quinto eu dei uma fraquejada. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio mulher.; (Palestra no Clube Hebraica, abril de 2017).