Diversão e Arte

Crônicas de um ano difícil

O compositor Martinho da Vila lança coletânea de crônicas singular, com 48 textos escritos na proporção de um para cada semana, em que comenta os acontecimentos de 2018

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 03/06/2019 04:08
O compositor Martinho da Vila lança coletânea de crônicas singular, com 48 textos escritos na proporção de um para cada semana, em que comenta os acontecimentos de 2018


Martinho da Vila costuma planejar o ano que vai chegar no dia 31 de dezembro. No último dia de 2017, ele sentiu a necessidade de escrever sobre o que estava por vir. Já sabia, mais ou menos, que 2018 seria difícil. Não imaginava, porém, tamanha atipicidade. ;Os momentos mais difíceis foram as semanas em que morreu muita gente conhecida, como dona Ivone Lara, dona Maria. Isso é meio chatinho. E teve muito isso durante o ano;, repara o cantor e compositor, que lança, pela Kapulana, 2018 ; Crônicas de um ano atípico.

No total, são 48 textos escritos na proporção de um por semana durante o ano inteiro. ;Pensei ;vou fazer um livro de crônicas do ano, mas não de crônicas normal, que a gente escreve para o jornal, que nem meu último livro;;, explica. Os textos lembram, em muito, um diário com relatos de fatos ocorridos, mas sempre acompanhado de comentários. Martinho conta que não foi difícil escrever. Ele se programou para sentar e escrever toda segunda-feira, de maneira que os fatos da semana recém-terminada ainda estivessem frescos na cabeça. ;Não foi muito difícil, eu lia dois ou três jornais, ficava atento a tudo que estava acontecendo e ia anotando o que mais me sensibilizava, positivamente ou não;, conta o autor, que começou a escrever em 1; de janeiro de 2018.

O ano que viu Martinho da Vila completar oito décadas de existência foi também um conjunto de dias complicados. Se começou com as comemorações do aniversário ; pontuado por shows realizados pelos netos Raoni e Dandara e seguido por uma série de homenagens de toda a classe musical ;, os meses que se seguiram carregaram um amargor. Ou foram péssimos, na avaliação do compositor. Em março, o Brasil assistiu ao assassinato de Marielle Franco e, em abril, à prisão de Lula, ;preso injustamente;, na concepção de Martinho.

Em maio, de bom mesmo, só teve a celebração das bodas de prata do casamento com Cléo. ;Junho foi triste;, escreve, lembrando da derrota na Copa, e ;julho passou batido;. ;Setembro começou mal com lamentoso incêndio do Museu Nacional e foi o mais atípico, pois uma raiva incomum tomou conta de muitos corações, e o Bolsonaro foi esfaqueado; avalia. Daí em diante, tudo ficou mais difícil, com eleições em outubro e a revelação dos crimes de João de Deus em dezembro.

A escrita de Martinho é muito simples e direta. Ele não tergiversa muito, reproduz muita coisa lida no noticiário e faz desse material o objeto dos comentários. A música está presente em todo o livro e, eventualmente, há até letras transcritas para ilustrar um comentário. Há um certo otimismo e bastante bom-humor. ;Quando a gente é mal-humorado, vê as coisas só pelo lado ruim;, garante. ;E quando é pessimista, não faz nada. As mudanças que aconteceram no mundo foram feitas por otimistas e positivistas. A gente tem que acreditar. Bandeira da fé, meu disco mais recente, é fé no sentido de ter esperança.;

Todos os textos vêm escritos na terceira pessoa, uma escolha deliberada, porque Martinho sabe que uma das fontes da crônica é a vivência do próprio autor. ;Na crônica tem muita coisa da gente. E minha intenção era informar;, avisa

; TRECHOS DO LIVRO

Balança mas não cai
Passado o carnaval, as notícias políticas nos jornais e nos programas informativos de televisão versavam sobre a condenação do Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Corrupção passiva é um crime previsto no direito penal brasileiro, que consiste no ato do agente público pedir ou receber algum tipo de compensação ilícita em troca de serviços relacionados com a sua atividade pública, e lavagem de dinheiro é o procedimento usado para disfarçar a origem de recursos ilegais quando alguém ganha dinheiro de forma ilícita ; por exemplo, com crimes como tráfico de drogas, contrabando, sequestro e jogo ilegal e, para depositar em bancos, tem de armar estratégias para justificar a origem e, assim, evitar suspeitas da polícia ou da Receita Federal.

Um sítio em Atibaia, em nome de uma empresa, usado para lazer, e um tríplex onde poderia habitar, ambos de origens duvidosas, podem ser gentilezas suspeitas, mas é injusto atribuir ao ex-presidente acúmulo de fortunas que não tem em bancos brasileiros e nem em paraísos fiscais.


; Marielle presente

Não foi possível dormir sossegado. O sono foi várias vezes interrompido com as boas lembranças da festa de aniversário, o que normalmente não faz bem, mas o despertar foi pior. As manchetes dos jornais provocaram uma sensação de vazio, como se o corpo fosse oco:

O DIA ; VEREADORA MARIELLE É ASSASSINADA NO ESTÁCIO
O GLOBO ; LÍDER DA MARÉ, VEREADORA DO PSOL, É ASSASSINADA A TIROS
Esta crônica seria sobre as manchetes dos periódicos de hoje, mas não deu. Baixou um estado de perplexidade e de insegurança. Nos dias seguintes os jornais noticiaram que milhares de pessoas protestaram contra a violência, sem bandeiras partidárias e sem a presença de políticos que, normalmente, aproveitam tais ocasiões. Os primeiros que tentaram foram vaiados e nenhum mais se arvorou.

Um grande sonho
O incrível é que funcionou em todo o Brasil o seu discurso de campanha de Bolsonaro, polêmico e muito contundente.

Negros
1. ;Eu fui num Quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$1 bilhão por ano é gastado com eles.; (Em palestra no Clube Hebraica, abril de 2017).

Estupro
2. ;Fica aí, Maria do Rosário, fica. Há poucos dias, tu me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece. Fica aqui pra ouvir.; (Em discurso na Câmara, em 2003). Ao explicar disse: ;Ela não merece (ser estuprada) porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar porque não merece.;

Coro no filho gay
3. ;O filho se começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro ele muda o comportamento dele. Tá certo? Já ouvi de alguns aqui, olha, ainda bem que levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem.; (Em programa da TV Câmara, novembro de 2010).

Fraquejada
4. ;Fui com os meus três filhos, o outro foi também, foram quatro. Eu tenho o quinto também, o quinto eu dei uma fraquejada. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio mulher.; (Palestra no Clube Hebraica, abril de 2017).

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