Severino Francisco
postado em 08/06/2019 06:10
Rubem Braga não gostava das crônicas de Clarice; comentava que ela era melhor ;em livro;. Quer dizer, nos contos e romances. A exceção, para Braga, era o texto lisérgico que ela escreveu sobre Brasília. Mas vejam a ironia: ele foi publicado no volume de contos completos organizado pelo biógrafo Benjamim Moser. Em contrapartida, a célebre crônica Felicidade clandestina também entrou nas antologias dos contos. E, neste sentido, a leitura de Todas as crônicas (Ed. Rocco), tijolaço de quase 700 páginas, nos convida a uma reavaliação do veredito emitido pelo mestre capixaba. Sem exagero, é uma nova Clarice Lispector que se revela e se desvela.Na verdade, a própria Clarice esbravejava, mas também considerava a sua produção de crônica circunstancial e menor. No entanto, o gênio da escritora borbulhou nas páginas de jornais e revistas, de 1946 até o ano de sua morte, em 1977. A coletânea organizada por Pedro Karp Vasquez enfeixa textos divididos em três segmentos: o primeiro é o do Jornal do Brasil, o mais longo, correspondendo ao período entre agosto de 1967 e dezembro de 1973; o segundo é reservado à colaboração com outros veículos da imprensa carioca (O Jornal, Senhor, A Manhã, Joia, Mais e Última Hora); e o terceiro é o extraído do livro A legião estrangeira.
A produção do Jornal do Brasil havia sido reunida em A descoberta do mundo. No entanto, 64 textos ficaram fora. Ao todo, a edição atual apresenta mais de 120 textos inéditos das diversas fases. O catarpácio de quase 700 páginas pode meter medo à primeira mirada. Mas ele propõe uma magnífica aventura de leitura, que seduz do começo ao fim. A sua escrita tem uma fluência de água viva brotando das pedras. Ela capta situações, seres, atmosferas, animais e coisas na velocidade do instinto.
É possível encontrar um pouco de tudo que a liberdade da crônica permite: confissões, evocações, divagações, relatos de encontros em festas (com Caetano Veloso e Guimarães Rosa), epifanias, perfis de escritores e de artistas (Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Antonio Callado, Gabriel García Marquez, Lúcio Cardoso, Jorge Luís Borges, Iberê Camargo, Djanira, Burle Marx).
Clarice ficou atormentada ao receber o convite do jornalista Alberto Dines para escrever crônica semanal no Jornal do Brasil, sua colaboração mais contínua e regular. Discutiu bastante a condição de cronista: ;Uma pessoa me contou que Rubem Braga disse que eu só era boa nos livros, que não fazia crônica bem. É verdade, Rubem? Rubem, eu faço o que posso. Você pode mais, mas não deve exigir que os outros possam. Faço crônicas humildemente, Rubem. Não tenho pretensões;.
Ser mais leve
Ela sempre se divide em tensões dramáticas. Ficava satisfeita quando recebia cartas dos leitores. Ao mesmo tempo, sentia-se exposta, angustiada de desvelar a intimidade mais secreta. Aprendeu que ser cronista é desnudar a alma.
Clarice começou vacilante em face do ideal do cronista como autor de textos leves para entreter os leitores. Sentia-se incomodada com a função: ;Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto. Na verdade eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica. Ser mais leve só porque isto é uma coluna ou uma crônica. Divertir? Fazer passar uns minutos de leitura? E outra coisa: nos meus livros quero profundamente a comunicação profunda comigo e com o leitor;.
Mas, aos poucos, sem perceber, Clarice vai cavando o seu lugar. Não é o de Rubem Braga, o de Cecília Meireles, o de Nelson Rodrigues ou o de Vinicius de Moraes. O estilo que inventa é clariciano, fundado nas epifanias que irrompem ao correr da pena. A liberdade de Clarice entra em sintonia com a da crônica: ;Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica nem de coluna nem de artigo. Mas sei que hoje é um grito. Um grito! De cansaço.;
Nem sempre ela respeita o princípio da leveza requerida pela crônica publicada no papel efêmero do jornal. E, com frequência, ela reflete sobre o processo de criação. Ela diz coisas lindas sobre o ato de escrever, que, para ela, é uma ação espiritual: ;Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada;.
Com seus radares poderosos, ela sente no corpo a pulsação da primavera, reverencia Sérgio Porto depois da morte do humorista, entrevista Pablo Neruda, fala sobre a experiência de mirar-se no espelho ou perfurmar-se: ;Já falei do perfume de jasmim? Já falei do cheiro do mar. A terra é perfumada. E eu me perfumo para intensificar o que sou. Por isso não posso usar perfumes que me contrariam. Perfumar-se é uma sabedoria instintiva;.
Retrato estilhaçado
Ao longo da leitura, forma-se um retrato estilhaçado de Clarice, como se fizesse parte de um quebra-cabeças infinito. A escritora, a cronista, a mãe, a mulher cotidiana, a transcendente, a solitária e a solidária. Apesar de todas as revelações, ela permanece enigmática. Como disse, a revelação de um mistério é sempre outro mistério.
Clarice declara que nasceu para três coisas: amor, escrever e ser mãe. O amor ao outro é tão amplo que inclui até perdão para si mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes para ela que a vida é curta para tanto. ;Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca;.
Diferentemente de muitos outras artistas, ela não via as três facetas como incompatíveis. Se tivesse de escolher entre a literatura e a maternidade, optaria deliberadamente por ser mãe. Escrevia sempre à máquina na frente dos dois filhos e atendia quando eles solicitavam atenção.
Embora considere escrever uma atividade essencial, alerta para a circunstância de que pode ser abandonada pela inspiração ou a motivação. Em contrapartida, o amor seria infinito: ;Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera;. É uma sabedoria que ela arranca diretamente da experiência, sem intermediários: ;Quando o amor é grande demais, torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto;.
Ela viajou até o Egito e mirou a esfinge por alguns segundos. O resultado não poderia ser diferente: ;Vi a Esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou. Encaramo-nos de igual para igual. Ela me aceitou, eu a aceitei. Cada uma com o seu mistério;.
Conversas com Caetano e Rosa
Certo dia, Clarice acordou às quatro da madrugada. Minutos depois, tocou o telefone. Era Caetano Veloso. Conversaram até as seis da manhã. Caetano sabia tudo sobre Clarice, até mesmo o que não era verdade: ;Nem sequer corrigi. Ele estava numa festa e disse que a namorada dele ; com quem meses depois se casou ; sabendo a quem telefonava, só faltava puxar os cabelos de tanto ciúme;.
Já Guimarães Rosa lhe disse uma algo precioso e inesquecível que a deixou muito feliz: falou que a lia não para a literatura, mas para a vida: ;Citou de cor frases e frases minhas e eu não reconheci nenhuma;.
Em algumas crônicas inéditas, Clarice reconstitui os instantes trágicos da queimadura que sofreu no apartamento em que morava, em consequência de um incêndio. Admite que a novela O Sheik de Agadir, de Glória Magadan, era o único bálsamo que aliviava a sua dor, durante os três meses em que permaneceu internada.
Clarice escrevia ao correr da pena. O resultado é uma produção desigual, mas sempre permeada de epifanias. As crônicas completas de Clarice revelam que Rubem Braga estava equivocado. Não percebeu que ela inventou uma espécie de subgênero dentro do gênero: a crônica metafísica. A partir de situações triviais, Clarice lança o leitor em grandes voos de lirismo.
Essa coletânea inscreve Clarice Lispector na galeria dos grandes cronistas brasileiros. Alguns textos figuram entre os melhores que ela escreveu em qualquer gênero. Ler Todas as crônicas é uma experiência metafísica inesquecível, que pede releitura: ;A beleza é nosso elo com o infinito;, escreveu Clarice. (SF)
Todas as crônicas
Clarice Lispector
701 páginas/Ed. Rocco