Ricardo Daehn
postado em 11/06/2019 07:22
;Uma mulher, num corpo de homem;: foi desta forma, sintetizada pelo diretor de cinema Marcelo Díaz, que o cabo José Carlos vivia o ápice de uma crise, para se afirmar como mulher. Ainda atuante, à época, como militar da Força Aérea Brasileira, ele buscou atendimento médico, psicológico e psiquiátrico ; aos moldes da recomendação do Conselho Federal de Medicina. Até pouco antes, seguia estritas regras da corporação, atirava, marchava bravo, era um soldado, que havia se casado e tido uma filha. Foi em 1998, ao acessar maiores informações sobre transexualidade, pela tevê, que percebeu a força das próprias necessidades. Em pormenores, o enredo da vida de Maria Luiza da Silva (reformada da FAB), na condição de pessoa retirada do quadro da ativa, por invalidez, é o que nutre o documentário Maria Luiza, assinado pelo brasiliense Marcelo Díaz e ainda inédito em Brasília.
;O que me move é contar histórias de superação e de transformação;, sublinha o cineasta aplicado no envolvimento com arte e cultura. ;A Maria Luiza é um caso particular, ao falarmos de transformação, de transgênero ; dá para criar associação direta. Mas a questão pessoal dela vai muito além do gênero. Ela é uma mulher transexual, mas é militar. Ela é católica, mas é transexual. Ela é uma senhora, mas que opta por ter uma vida mais solitária. Ela não performa, dentro do que estamos mais acostumados a ver, sendo mais tradicional;, observa Díaz.
A ideia de que, ;desde viva;, Maria Luiza sempre se sentir mulher acompanha o cineasta ao longo de toda a realização do filme. O primeiro contato com a história veio, há cerca de dez anos, com a leitura de matérias escritas pelo repórter Marcelo Abreu. ;Ele foi uma das pessoas que mais trouxe textos sobre ela. Fiquei muito comovido com o material. O Correio é, de certo modo, protagonista do filme: em momentos decisivos da vida da personagem, temos imagens de reportagens;, explica o diretor.
Realizar um filme de impacto social, com conteúdo autoral e proposta artística foi o norte dele, disposto a trazer uma discussão para a sociedade e chegar a fatores concretos, na promoção de mudanças. A história de luta, no primeiro caso de mudança de nome e de gênero de transexual militar brasileira, resultou no longa-metragem que teve recursos de produção e finalização da ordem de R$ 600 mil provenientes do Fundo de Apoio à Cultura, respaldo que deve se repetir na distribuição do longa, previsto para o fim do ano.
Galeria de amigos
Sempre na voz da protagonista, que se posiciona no enredo, Maria Luiza traz lembranças da militar reformada, desde a infância e adolescência. Nascida em 20 de julho de 1960, ela carrega a coincidência da data e do mês do nascimento do maior patrono da aviação Santos Dumont, a maior festa no âmbito da Aeronáutica, instituição da qual foi desligada em 2000.
Maria Luiza tomou parte como personalidades do porte de José Perdiz (incentivador de teatro na cidade) e do artista Galeno, homenageados na filmografia de Marcelo Díaz. Dona apenas de documento militar, e paciente, por dois anos, de tratamento hormonal ; com o sexo desejado impulsionado por receitas médicas de militares, Maria Luiza não viu sua afirmação feminina oficializada pela FAB.
O diálogo com o público amplo, almejado pelo diretor, a partir da exibição do filme, começa a ser configurado: presente na mostra O Estado das Coisas (do festival É Tudo Verdade), selecionado junto com outros 13 títulos (em universo de mais de 1600 filmes inscritos), Maria Luiza arrebatou, em quatro sessões, em São Paulo e no Rio de Janeiro. ;Tivemos sessões incríveis; fiquei impressionado pela comoção de muitos: desconhecidos abraçavam a Maria Luiza, estavam comovidos e pretendiam se solidarizar;, comenta Díaz.
Pelas coordenadas dadas pelo cineasta, Maria Luiza é das pessoas que transitam em qualquer lugar. ;Ela é muito aceita pelos ex-colegas militares; não foi excluída pelos amigos, mas pela Força Aérea. Maria Luiza tem uma profundidade de quem não está numa caixinha, ao estilo padrão. Ela ama de paixão ser militar, pelos valores e conceitos que partilha. A identidade dela não se encerra no existencial, tendo a ver com o momento pelo qual passamos: com ela, tive um aprendizado. Talvez, na rua, ela passasse despercebida, por ser uma mulher simples, comum, e que só quer ser feliz. Maria Luiza sofreu muito, e a história no filme vai além do conteúdo trans e LGBT, discutindo identidade. Trata da vontade que todos têm de querer ser quem quiserem. Em suma, trata do ;você pode ser quem você é;;, conclui.
Diversificando
Num primeiro momento, a saída da grade do programa Transando com Laerte do Canal Brasil poderia soar a encolhimento de representatividade, mas, a bem da verdade, o quadro é exatamente o oposto: a partir da meia-noite de hoje, justo no mês do orgulho LGBT, estreia TransMissão, programa de entrevistas a ser apresentado por Linn da Quebrada e Jup do Bairro. Na direção, os cineastas Claudia Priscila e Kiko Goifman retomam e aprofundam o grau de intimidade adquirido junto com ambas, por causa de obra anterior: o filme Bixa Travesty, exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro do ano passado).
Com convidados que vão de Tom Zé a Vampeta, passando por mulheres de âmbitos bastante diversos ; caso de MC Carol e da diretora de cinema Anna Muylaert ;, TransMissão vem ancorado na evolução cênica de Linn da Quebrada e de Jup. ;Tivemos a construção de intimidade. Nos conhecemos mais, desfrutamos mais disso, brincamos ainda mais. Ao saber o que pode incomodar, exercitamos outro ponto fundamental que é o respeito;, explica o diretor Kiko Goifman. Ele aponta a soma de intimidade e de respeito como armas poderosas de comunicação.
;Todos nós gostamos de estar juntXs. Agora é incrível como Linn e Jup evoluíram também nas entrevistas. Ficaram a vontade; diria até, que ficaram folgadas, no melhor dos sentidos (risos). Creio que todXs fomos aprendendo. Sabe ;equipe delícia; que beija na boca e quer beber juntXs? Somos assim; de fato;, comenta o diretor. Entre temas que aglutinam gênero, sexo e raça, esferas da arte, e concernem até
mesmo a aceitação de transexuais em meios acadêmicos, TransMissão será pautado pela multiplicidade de abordagens. No programa de estreia, a chefe de cozinha Paola Carosella conversa sobre inesperadas propriedades de alimentos, sobre a concepção da cozinha como lugar de cura e ainda sobre maternidade. Num trecho, comenta: ;O meu berço foram as cozinhas profissionais e as cozinhas de restaurantes. Eu não tive a cozinha acolhedora de casa;, enquanto noutro, enfatiza: ;Você estar bem alimentado, cura;.
Três perguntas // Linn da Quebrada
Você percebe o programa TransMissão como desbravador de espaços, com avanços de vozes, num canal tão simbólico quanto o Canal Brasil? Há a intenção de que se mostrem como resistência aos ;comandos; atuais na política?
Fico muito feliz e honrada por tomar este espaço, na tevê, junto com a Jup do Bairro. Espero que corpos e vozes como as nossas ecoem cada vez mais neste tipo de espaço. Se tornem cada vez mais plurais e mais diversas. Principalmente no que diz respeito a um programa de televisão como este no Canal Brasil: de produção de pensamento, de propagação de ideias e que promova encontros. É muito importante, muito simbólico e extremamente material que isso aconteça num momento como este. E que cada vez mais tenham outros corpos, e que isso seja um fato recorrente, e não algo pontual.
Que pretensão você tem, a partir da responsabilidade e da exposição, à frente do TransMissão?
Acho que o programa vem com toda força e com autenticidade. É algo que todas as pessoas que estavam envolvidas queriam. Parece que
todas nós estávamos sedentas por este espaços de diálogo e por exercer o pensamento livre. Porque, muitas vezes, nós percebemos em
programas de entrevista como o formato muitas vezes engessa e limita pensamentos e coisas que poderiam brotar do papo. O que a gente
tenta com o programa é que cada encontro seja livre na sua produção de pensamento. Encontramos pessoas muito diversas, com experiências distintas, e isso produz encontros únicos mesmo ; isso foi muito forte para a gente durante as gravações. Será uma grande
surpresa para todos.
Você se percebe como grande influenciadora?
Eu me vejo sim como influenciadora, no entanto, mais do que isso, me vejo como uma provocadora. E eu acho que esse espaço foi um espaço de provocação em todos os sentidos: tanto de me provocar a ocupar novos lugares, a me experimentar de novas maneiras que são
completamente novas pra mim e, me provocando, exploro conversas e temas não óbvios. Fico, principalmente, num lugar de escuta, lugar
de aprender, de pensar coletivamente. Eu acho que essa era a minha maior pretensão mesmo: me surpreender, me perceber em movimento. E eu acho que este programa coloca não só a mim, mas a muitas outras em movimento. Eu acho que isso é o que estamos precisando neste momento: de escuta, de não saber um pouco das coisas, de ouvir pessoas com pensamentos diferentes dos nossos e assim estimular a proposição de movimento.
Ativismo reconhecido
A dedicação por dois anos e meio na produção do longa Indianara, criado em plataforma de próprios recursos, ao lado da amiga e codiretora Aude Chevalier-Beaumel, mais do que animou o diretor de cinema Marcelo Barbosa. ;O filme teve uma recepção muito boa, emocionando público e crítica;, explica o diretor, ao contar de um enorme reconhecimento frente ao documentário que, recentemente, foi exibido no Festival de Cannes. A fita aborda o cotidiano da transexual ativista Indianara Siqueira, com atuação forte de acolhimento junto a transexuais cariocas. Formado na profissão pelo exercício prático em Brasília, Marcelo se viu estreante em longa, com Indianara, primeiro
filme a participar do segmento ACID de Cannes, reservado a produção independnete. A repercussão foi tamanha que, ao final do ano, o
longa terá distribuição assegurada na França.