postado em 11/06/2019 04:17
Vertente literária, cinematográfica e televisiva, a distopia consiste na representação de uma história que se passa em um mundo e em uma sociedade paralelos aos atuais. Normalmente, estão ambientadas num futuro imaginado, em que há influência da tecnologia (seja o avanço, seja o atraso) e das ferramentas de controle governamentais (em sua maioria, mais autoritárias). 1984, Jogos vorazes, Matrix, Laranja mecânica, Blade runner, The handmaid;s tale (O conto da aia, em português) e Divergente são apenas alguns dos exemplos de obras e produções mais conhecidas do gênero na literatura, no cinema e na televisão internacional.
Apesar de o estilo ser constantemente representado pelo mundo, no Brasil, não costuma ter tanto espaço assim. Ou pelo menos, era o que acontecia. Com alguns lançamentos fortes em 2019, o cenário brasileiro parece passar por uma mudança, que aponta a chegada das distopias no audiovisual produzido pelo país. Um dos maiores exemplos disso é o calendário de estreias. Na última sexta-feira, por exemplo, a Netflix divulgou a terceira temporada de 3%, primeira série original do serviço de streaming no Brasil e que é uma distopia.
Criada por Pedro Aguilera, a série, que estreou em 2016 na plataforma, retrata um mundo devastado, em que os habitantes, ao completarem 20 anos, passam por um processo seletivo que escolhe apenas 3% dos candidatos como merecedores de deixar o Continente, lugar miserável e decadente, em direção ao Maralto, espaço onde há abundância de recursos.
Série precursora
Com essa sinopse, a produção assustou em um primeiro momento como a primeira aposta da Netflix em conteúdo brasileiro. E, apesar das críticas no Brasil durante a estreia da primeira temporada, o seriado logo se tornou o mais assistido nos Estados Unidos entre as produções de língua não inglesa, perdendo o posto meses depois para o hit espanhol La casa de papel, e ganhou uma terceira sequência, que vem recebendo críticas positivas e pode levar o seriado a um quarto ano.
;É um prazer para nós estarmos fazendo uma série de um gênero que pouco se fez aqui no passado. Acho que isso pode funcionar tanto como uma barreira quanto como um fator de curiosidade que trouxe muitas pessoas para a série. Falar que fizemos uma ficção científica distópica no Brasil sempre foi uma coisa que usamos para atrair espectadores, desde o piloto;, revela Pedro Aguilera em entrevista ao Correio.
Para o showrunner e roteirista de 3%, a distopia é um estilo interessante para se investir no país. ;Acho que é um gênero muito legal para o audiovisual brasileiro explorar;, completa.
O ator Bruno Fagundes, que interpreta o personagem André em 3%, concorda: ;Acho que ainda somos pioneiros nisso. Conseguimos conquistar essa linguagem, que não só foi a primeira série da Netflix, mas do gênero no Brasil e que fez um grande sucesso. Estamos indo para uma terceira temporada, o que é um feito de uma série 100% brasileira;.
Fagundes avalia que o caminho para as produções distópicas é algo natural. ;É impossível você falar de pop art sem falar de surrealismo, então de alguma forma, eu acho que a gente tem um movimento comum e geral das artes que ajudou a sermos inseridos no mercado. As pessoas hoje são mais abertas para receber este tipo de situação, tipo de enredo e tipo de conflito;, analisa.
Premiado
Se na telinha, 3% representa a distopia brasileira, na telona, o cargo ficou para outra produção. Premiado pelo júri no Festival de Cannes deste ano, o longa-metragem Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é o exemplo de que o gênero pode e deve ganhar força no Brasil com a estreia do filme em 29 de agosto nas salas de cinema.
A história, que tem nomes como Sônia Braga e Silvero Pereira no elenco, se passa daqui a alguns anos, em que a pequena cidade de Bacurau no sertão brasileiro desaparece do mapa em meio a um Brasil dividido entre Norte e Sul, do vilarejo sofrendo com o desabastecimento crônico e de uma ameça dos agentes estrangeiros do Sudeste.
A atriz franco-americana Alli Willow, que tem feito carreira no Brasil, interpreta a vilã Kate em Bacurau. Com caráter dúbio, a personagem tem papel importante nos embates da narrativa, o que foi um fator para que Alli entrasse no elenco da produção. ;O roteiro foi decisivo, me apaixonei pela história. Além, é claro, do fato de poder estar em locações pelo Nordeste, lugar que me seduziu por completo e que vou levar comigo, dentro do meu coração, para sempre;, afirma.
Com experiência dentro e fora do Brasil, ela analisa que esse é o momento para o país arriscar em gêneros que fazem sucesso lá fora. ;Acho que o cinema e as séries abrem um leque de novos gêneros em âmbito internacional, e o Brasil, sendo um líder em novela, se arrisca a inovar e a testar novos tipos. É uma maneira de seguir esta onda mundial e abraçar o que está atraindo cada vez mais público;, completa.
Em alta
Antes, em junho, outro filme brasileiro terá a distopia como norte. É o longa-metragem Divino amor, de Gabriel Mascaro, que estreia no dia 27 nos cinemas, mas já passou pelos festivais de Sundance e de Berlim. A produção se passa no Brasil de 2027, um país extremamente influenciado pelo fanatismo religioso.
Protagonizada por Dira Paes, a atriz é a personagem Joana, uma mulher profundamente devota, que é escrivã de um cartório e usa a posição para tentar salvar casais que chegam para se divorciar. Em meio a isso, ela se deve em um dilema por conta de uma crise em seu próprio casamento.
Em entrevista coletiva durante o Festival Internacional de Cinema de Berlim, o diretor Gabriel Mascaro falou sobre a produção. De acordo com ele, o filme retrata, de certa forma, as mudanças radicais sofridas na sociedade atual. ;Devemos refletir urgentemente sobre o que isso quer dizer;, em referência ao projeto idealizado pelo presidente Jair Bolsonaro com o lema ;Brasil acima de tudo e Deus acima de todos;.
* Estagiária sob supervisão de Severino Francisco
; Cinco perguntas // Alli Willow, atriz de Bacurau
Como surgiu a oportunidade de integrar o elenco de Bacurau?
Na verdade, foi fruto de um teste que fiz em São Paulo, quando procurada pelo produtor do elenco. Cerca de um ano depois, tive um encontro com o Kleber (Mendonça Filho) e o Juliano (Dornelles) para uma conversa sobre o filme. Um mês depois desse encontro, a produtora fez contato me dando conta de que seria meu o papel.
O que pode contar sobre a sua personagem Kate?
Ela é bem diferente de mim, física e psicologicamente, Kate é uma ;vilã; de caráter dúbio. Na virada do jogo, se mostra frágil e fraca, por outro lado, de uma dureza crua, quase masculina ao extremo, e que, de repente, se revela vulnerável e infantil. Complexo. Foi um desafio mergulhar na densa carga dramática da personagem. Mas contei com o total apoio da direção, bem como de toda a equipe.
Qual foi o sentimento para você de fazer parte de um filme premiado em Cannes?
Mágico! Estar ali no red carpet (tapete vermelho), representando um filme brasileiro, sendo francesa, tendo participado de um intenso e profundo trabalho, com pessoas tão maravilhosas, tão variadas, com tanto recheio dramático, acaba por ser inevitável a sensação de coroamento de um longo processo.
Você não é brasileira, mas acumula trabalhos no Brasil. Como se deu essa sua relação com o país?
Foi em Nova York, num festival de curtas brasileiros, que tive o meu primeiro contato. Assistindo a um curta, da Petra Costa, decidi que meu próximo destino seria o Brasil. O aspecto poético, sensual e simples me chamou a atenção. Logo depois, Flávia Lacerda, com quem tinha amigos em comum, me chamou para fazer uma pequena participação na minissérie da Globo, Amorteamo, dirigida por Isabela Teixeira. Depois de passar três meses no Rio de Janeiro, decidi me mudar, apesar de todos acharem isso uma loucura, pois só falava ;bom dia; e ;boa tarde;, em português. Acredito que foi um ;chamado;, uma ;intuição;. Já apaixonada pelo idioma, o convívio com brasileiros me fez amar a riqueza e a diversidade do povo.
Além de Bacurau, você está em outras produções, como a série O escolhido, da Netflix, e o Três verões. O que pode contar sobre essas produções e sobre as suas participações?
Poder estar na minha plataforma preferida, a Netflix, é um sonho. Creio nas inúmeras possibilidades do streaming, principalmente no Brasil, onde ainda há cidades que não têm cinema, embora ainda ache que não se deve abandonar as demais mídias, como televisão, teatro, e, principalmente, a ida ao cinema. Em O escolhido, tive a oportunidade de mergulhar, por meio ano, num mundo paralelo, vivendo uma personagem que me integra até hoje. De grande intensidade e entrega, beirando o insano, uma verdadeira sobrevivente, uma força natural, ela, do meu ponto de vista, foi um presente. Os autores criaram um regalo para qualquer atriz que deseje ser desafiada. Já em Três verões, a clave do personagem se inclina mais para uma mulher cheia de meninices, onde o aspecto divertido e leve mais se sobressaem. Trata-se de uma americana que namora o personagem do Daniel Rangel. Foi muito bom participar dele também.