Ricardo Daehn
postado em 14/07/2019 06:05
Dizem que dinheiro não traz felicidade, mas é em Toritama ; justo o quinhão pernambucano traduzido como a "terra da felicidade" ; que a atividade financeira não para, dada a importância da produção local de jeans no Brasil. Revolvendo os bastidores da roda econômica que move o município, o cineasta Marcelo Gomes criou o longa-metragem Estou me guardando para quando o carnaval chegar, em exibição no Cine Brasília (EQS 106/107), depois de integrar a Mostra Panorama do Festival de Berlim e de ter recebido o prêmio da crítica no festival É Tudo Verdade.
Pesa no filme, no embrião da obra, a lembrança mantida por Marcelo Gomes das viagens feitas, ainda criança, com o pai, um ex-funcionário do governo. Na época, a área de agreste de Toritama era muito escorada na realidade agrária. Intrigado com o novo painel, o cineasta parece dissecar, de modo consistente, parte do país do qual, na telona, já expôs o heroísmo de Tiradentes (no longa Joaquim, de 2017), mito justo numa época do ;salve-se quem puder;. Estou me guardando... desponta nos cinemas num período em que relações trabalhistas nacionais têm sido desprezadas, com estímulo à autonomia e autossuficiência.
Filmes famosos de Marcelo Gomes, apresentados em festivais como os de Cannes e de Veneza, vale a lembrança, revelam mascates e tipos itinerantes, vistos em Cinema, aspirinas e urubus e Viajo porque preciso, volto porque te amo. Com Estou me guardando, não é diferente: para além da obsessão com a produtividade, os personagens da vida real pactuam um descanso que não tem preço, mas destino inconteste: as praias nordestinas, festivas à época do carnaval.
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Vendas apressadas de utilitários, junto com os montantes acumulados no dia a dia são o passaporte para o litoral, e o cenário atípico de completa inatividade em Toritama. Pelas lentes de Marcelo Gomes há a prova de que a liberdade pode ser azul ; servir a pequenos sonhos, trazer despojamento e ilimitar singelos prazeres. Azul da cor do jeans que tanto alimenta sonhos de uma população de 40 mil habitantes e que se rende à confecção de 20% das peças jeans feitas no país.
Neoliberalismo agreste
Por Mauro Giuntini Viana
O documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar (Marcelo Gomes, 2019) apresenta uma crítica contundente ao neoliberalismo econômico, por meio de uma representação sensível da vida na pequena cidade de Toritama, localizada no Agreste do estado de Pernambucano. Toritama tem pouco mais de 43 mil moradores e é conhecida como a capital brasileira do jeans.
A ocupação econômica da região de Toritama está associada à criação de gado e de caprinos. Na década de 1970, implantou-se na cidade um parque de produção de artigos de couro, principalmente calçados e bolsas. Nos anos 1980, a atividade de produção semi-artesanal de artefatos de couro entrou em declínio e as pequenas fábricas foram a falência. Não obstante, o maquinário de corte e costura de couro que restou na cidade era também adequado para ser usado na fabricação têxtil de jeans, por ser um tecido grosso, provendo uma base inicial para uma reorientação da economia local.
Atualmente, Toritama é o segundo maior polo produtor de jeanswear no país, contabilizando a impressionante marca de 60 milhões de peças do produto por ano (cerca de 16% da produção nacional). O ambiente é agitado e barulhento e a vida gira em torno de numerosas fábricas têxteis de fundo de quintal, nas quais se trabalha mais de 12 horas por dia, sem folga semanal. Nestas unidades, chamadas pelos locais de ;facções;, os trabalhadores, que recebem por peça produzida, orgulham-se de serem seus próprios patrões e poderem escolher o quanto vão se dedicar a labuta.
No entanto, esses empreendedores que fabricam jeans em um ritmo frenético, chegando a costurar até 1.000 zíperes ao dia por 50 dólares, dizem-se satisfeitos em ganhar mais do que no passado, quando um cortador de cana recebia de 3 a 4 dólares por semana. Estimulados pela cobiça e pressionados pela sub-remuneração, esses empreendedores trabalham diuturnamente e praticamente só descansam poucos dias por ano, durante o Carnaval, quando conseguem economizar para tal propósito.
Nesse contexto, as relações entre trabalho e lazer lembram as existentes no período pré-industrial na Europa e Estados Unidos no século XIX. Ao traçar um retrato da vida em Toritama, o diretor Marcelo Gomes e sua equipe capitaneada pelo produtor João Vieira Jr (Carnaval Filmes), movidos pela curiosidade e municiados de bom-humor, adotam estratégias narrativas variadas para investigar contradições e distorções do Brasil contemporâneo.
A narrativa está estruturada em torno da locução em primeira pessoa do diretor do filme, na forma de um diário de viagem do seu retorno recente à Toritama. Em tom melancólico e nostálgico, Marcelo Gomes compara Toritama de hoje com suas memórias de infância, quando visitava a cidade acompanhando o pai em viagem de trabalho como coletor de impostos do estado. Trata-se, portanto, de uma composição por contraste entre o passado e o presente, o que ressalta o choque entre os aspectos bucólicos de uma sociedade agropastoril pacata e silenciosa de outrora com a agitação ruidosa de um ambiente industrial automatizado. Dessa forma, Gomes tenciona dois tempos diferentes de forma a assinalar um norte que guie sua exploração do espaço da cidade.
Conduzido pela locução do sujeito narrador do filme, Gomes, o contraste temporal entre a imagem que o narrador tinha antes da cidade e aquilo em que ela se transformou, vai encadeando sequências que variam entre abordagens expositivas, observacionais, reflexivas e interativas. O modo observacional permite a imersão mais sensorial no mundo repetitivo de trabalho junto às máquinas de corte, costura e customização do jeans. Logo no início do filme, uma montagem de planos mostra o transporte precário de grandes volumes de peças de jeans amontoados em pequenas motocicletas, configurando uma metáfora visual da desproporção da carga de trabalho sobre aquela comunidade.
Sequências do filme com teor mais reflexivo estimulam uma postura mais ativa do espectador ao apresentar a narração de Gomes acompanhada de sons e imagens que não se limitam apenas a ilustrar o que está sendo dito, mas atiçam a geração de significados por meio de conexões inesperadas. Em determinado momento, por exemplo, o narrador-diretor comenta seu desconforto com o ruído das máquinas têxteis. Nesse momento, o som ambiente é eliminado completamente e uma música clássica passa a ditar o ritmo da montagem, oferecendo outra perspectiva para os movimentos recorrentes dos trabalhadores que operam os aparelhos na fabricação do jeans. Em outra cena, a voz em off de Gomes lembra que, antigamente, sempre às seis horas da tarde, as rádios tocavam a música Ave Maria. E de forma inesperada, entra um rap, em alto volume, com letra contestadora sobre a opressão do sistema produtivo combinado com imagens dos operários das ;facções; trabalhando de forma vigorosa, em uma estética de videoclipe. Esses dois exemplos ilustram a eloquência da banda sonora do filme ao combinar, de forma criativa, locução, sons ambientes e música.
A abordagem interativa é utilizada principalmente na busca e desenvolvimento dos personagens do filme. Conduzidas pelas perguntas de Gomes, o espectador vai se familiarizando com os habitantes de Toritama e descortinando perspectivas diferentes de suas inserções e conflitos com o modus operandi naquela comunidade. São apresentados não apenas trabalhadores das ;facções; do jeans, mas também pessoas que têm outras ocupações, como o pastor de cabras Canário, que manifesta apreço por seu ofício e desinteresse pelo trabalho predominante na cidade. Quando o principal personagem de Estou me guardando..., Leo, é apresentado despertando de uma soneca no trabalho depois do almoço, não é possível inferir sua relevância futura na trama. Gradualmente vai se revelando que Leo, além de trabalhador têxtil, é também pedreiro e dado a ;filosofar; sobre a vida. Dessa forma, o personagem vai ganhando camadas ambíguas e mais tempo de tela.
Quando chega a tão esperada hora de o povo de Toritama ir para a folia do Carnaval na praia, Leo, assim como vários outros trabalhadores, está sem economias para usufruir do único momento de lazer do ano. A trama revela os sacrifícios dos moradores, sem poupança, para não perderem a oportunidade única de descansarem e se divertirem. O filme mostra pessoas vendendo seus instrumentos de trabalho, como máquinas de costura, televisores e até geladeiras para poderem usufruir do Carnaval. Nesse momento, especuladores aproveitam-se da situação para comprar barato os pertences desses trabalhadores desprovidos de poupança e revender com lucro após o Carnaval, às vezes para os próprios donos originais.
O protagonista Leo tem melhor sorte. Ele é contratado pela equipe do documentário e treinado para filmar com toda a família seus devaneios na praia. O filme expõe a negociação da estratégia de passar a câmera para o entrevistado e, em seguida, a sequência do Carnaval filmada por Leo e seus familiares. A montagem valoriza os momentos de intimidade e espontaneidade que acrescentam um grau de lirismo até então inexistente na obra. A inserção do material produzido por Leo e sua família, logo depois da sequência dramática da venda de pertences para conseguir dinheiro para o único momento de lazer do ano deflagra uma catarse emocional no espectador e aprofunda os traços humanistas da obra. Enquanto o espectador acompanha a família de Leo no delírio, o diretor-narrador permanece com sua equipe em Toritama no Carnaval e reencontra a quietude com que se lembrava do lugar. Mas os dias de folia passam rápido e as máquinas e seus donos-servos voltam a produzir ruidosamente o ;ouro azul; do Agreste.
Por meio da utilização de modos de representação documentais variados ; expositivo, observacional, interativo e reflexivo ;; conduzidos pela locução em primeira pessoa do diretor, Estou me guardando... constrói um retrato sensível de uma comunidade muito laboriosa, que não perde sua alegria de viver, apesar das condições de trabalho extenuantes às quais se submetem. Ao convidar o espectador a gradualmente imergir em Toritama, Gomes revela as relações, por vezes perversas, de seus habitantes com sua principal atividade econômica e tece, de forma lírica e bem-humorada, uma crítica contundente ao modelo neoliberal de organização da produção. O filme tem potencial de despertar o interesse de públicos variados por oferecer uma narrativa envolvente que expõe de forma criativa algumas contradições do capitalismo.
Mauro Giuntini Viana é professor de Audiovisual da Universidade de Brasília e cineasta.