Diversão e Arte

Um livro para dois Josés

Pilar del Río e José Luís Peixoto conversam com público sobre romance no qual José Saramago é personagem

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 16/07/2019 04:26
Pilar:

Na primeira página de Autobiografia, José Saramago está empolgado com a conclusão de um romance e na expectativa para ver a expressão de Pilar del Río ao concluir a leitura. É o ponto de partida para uma história que vai falar do Nobel português, mas também de um jovem escritor às voltas com o primeiro romance e todas as inseguranças que essa estreia traz. Saramago é o personagem do oitavo romance de José Luis Peixoto e tema de conversa do autor em encontro com Pilar del Río hoje, no Auditório Camões, na Embaixada de Portugal.

Em Autobiografia, Saramago é figura central e essa escolha teve a ver com a importância do autor de Ensaio sobre a cegueira na própria trajetória de Peixoto. ;Conheci-o em 2001, quando recebi o prêmio literário com o seu nome. A partir daí, tive a oportunidade de conviver em múltiplas ocasiões até o seu falecimento, em 2010. Esse foi um período muito marcante para mim: estava publicando meus primeiros romances, fazendo várias escolhas de impacto nos caminhos que iniciava;, conta. ;Ter o exemplo próximo de Saramago nessa época foi determinante. Há vários anos vinha alimentando a ideia de ter Saramago como figura central. Todas as outras ideias foram construídas à volta dessa primeira intenção.;
É
o contraste entre um escritor no auge do reconhecimento e outro em início de carreira um dos pontos centrais do romance. A ação do livro acontece no momento em que Saramago se dirige para a consagração máxima da carreira de um escritor. ;Para mim, foi interessante fazê-lo contrastar com um jovem escritor em crise, com muitas dúvidas que, na verdade, não é muito diferente também de quem Saramago foi, segundo o que deixou escrito anos depois de publicar o seu primeiro romance Terra do pecado;, explica Peixoto. O título, ele avisa, é uma provocação no que diz respeito às referências pessoais.

Saramago estava com 25 anos quando publicou Terra do pecado, em 1947. Peixoto contava com um ano a mais ao estrear com Morreste-me. E publicar um primeiro livro é um momento, ao mesmo tempo, de realização e insegurança: sucesso e medo em relação ao futuro como escritor habitam o mesmo espaço. ;Creio que a proximidade entre essa consagração e esses momentos de grande dúvida é maior do que se quer imaginar. A força da convicção é muito importante na obra de Saramago. Ainda assim, para qualquer escritor, as dúvidas podem também ser um combustível essencial. Muitas vezes, escreve-se para tentar responder a certas perguntas;, repara Peixoto.

Admiração e curiosidade

Nas palavras de Pilar, com quem Saramago foi casado durante 22 anos, o livro é a ;agônica luta do escritor jovem com amores e perdas, aventuras diversas aqui e ali, personagens que vêm de outros mundos;. Ela conta que sentiu muita curiosidade e respeito ao saber do livro de Peixoto. ;Era a visão de um escritor que leio e admiro, saber a imagem que ele tinha de José Saramago me produziu curiosidade. Estava segura de que não haveria frivolidade e o confirmei: o livro de Peixoto é um romance honesto e belo;, avisa. Ela lembra que o livro não é uma biografia e recorre a uma ideia sempre repetida por Saramago para refletir sobre a decisão de Peixoto de chamar o romance de Autobiografia: ;O título não é casual nem insignificante: se chama Autobiografia porque, no fundo, ao escrever, claro, mas também ao ler, todos nós estamos contando a nós mesmos;.

Pilar lembra ainda que o próprio Saramago tomou emprestados ícones da literatura portuguesas para seus escritos. Fernando Pessoa e seu heterônimo estão em O ano da morte de Ricardo Reis e Luís de Camões é personagem de Que farei com este livro. ;Significa que a Literatura (com L maiúscula) cresce, avança, que as fontes não são esquecidas. Agora, José Luís Peixoto traz José Saramago para sua obra. É a vida, seguimos construindo a partir do que sabemos, intuímos e imaginamos;, diz Pilar, que esteve com Peixoto na Flip para o lançamento do livro e, antes, esteve em Curitiba para visitar o ex-presidente Lula.

Autobiografia sai primeiro pelo selo TAG, clube de assinantes para o qual Peixoto escreveu especialmente o romance. A edição comemora os cinco anos da TAG e será publicada pela Companhia das Letras ainda este ano. O autor recria vários episódios da vida do Nobel e faz à pessoa dele múltiplas referências, todas muito concretas. Mesmo assim, ele avisa, é preciso não perder de vista o fato de Saramago ser um personagem. ;Da mesma forma, o romance tem muitíssimas âncoras na realidade, mas continua a ser um texto de ficção;, diz.



Conversa com Pilar del Río e José Luís Peixoto
Hoje, às 19h, no Auditório Camões



Três perguntas / José Luís Peixoto


Pode-se dizer que você subverte um pouco o gênero nesse novo livro?
Essa era a intenção. Creio que qualquer gênero literário avança quando é questionado. Em vários aspectos, este romance propõe um jogo literário. Ao fazê-lo, pretende alargar certas fronteiras. Ainda assim, não deixa de ser um romance e, como tal, tem todos os elementos tradicionais do gênero.

Como acha que devem ser as autobiografias?
Mais do que a isenção, talvez impossível, as autobiografias exigem um compromisso de sinceridade. Ainda assim, é bom ter a consciência de que o texto escrito afasta-se sempre da experiência que lhe deu origem. Esse afastamento, condicionado pela própria natureza da linguagem, pode não ser apenas negativo. No espaço entre o que aconteceu e o que se consegue descrever, há lugar para a interpretação, que é o lugar de quem lê.

E qual o maior legado de Saramago para a literatura, na sua opinião?
A meu ver, uns dos maiores legados de Saramago será o despudor com que criou uma literatura de absoluto envolvimento e convicção. Em vários momentos, Saramago afirmou que ele próprio era o narrador de seus romances. A voz desse narrador era a sua vez. Na minha opinião, essa afirmação vem na sequência desse visceral envolvimento. A sua literatura é o espaço do humano.

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