postado em 27/07/2019 04:08
Enquanto Marie Curie fazia geleia, o marido Pierre Curie fazia pesquisa científica ;brincando; com fogos-fátuos. Pelo menos enquanto eram muito pobres e ela se dedicava à filha pequena, cuidava da vida doméstica e da família, as coisas eram assim. Em 1897. Sem ajuda, a Mulher-Maravilha que ela foi se desdobrava nas funções de esposa, mãe, dona de casa, pesquisadora e professora na Sorbonne de Paris. Nunca desanimou. Vinda de família culta, essa polonesa inteligentíssima, que só possuía um vestido preto surrado, tinha um objetivo na vida: ser cientista.
A vida dessa mulher extraordinária é contada pela espanhola Rosa Montero, no livro A ridícula ideia de nunca mais te ver (Ed. Todavia), de 2013, que só neste ano de 2019 chega às mãos do leitor brasileiro. Rosa Montero também é uma mulher extraordinária. Escritora premiadíssima, é autora de dezenas de livros de sucesso que incluem romances, literatura infantojuvenil, artigos publicados mundo afora e entrevistas antológicas.
Casamento de apaixonados
E, nesse livro tocante, Rosa cruza os caminhos de Marie Curie com os seus: ambas viveram um bom casamento, com maridos apaixonados, ficaram viúvas, sofreram um luto dolorosíssimo e buscaram um caminho independente. Escreveram sobre o luto para exorcizar a dor. E, ;lambendo; as feridas mais profundas, diz Rosa: ;A origem da criatividade está no sofrimento, o próprio e o alheio. A verdadeira dor é inefável, nos deixa surdos e mudos, vai além de qualquer descrição e consolo. A verdadeira dor é uma baleia grande demais para ser içada. E, no entanto, e apesar disso, nós, escritores, insistimos em dispor palavras vazias no texto. Lançamos palavras como quem atira pedrinhas num poço radioativo até ficar cego.;
Rosa interessou-se pela vida de Madame Curie a partir do momento em que leu a sua biografia, os seus diários doloridos e belos, e em seguida fez pesquisas e mais pesquisas sobre a obra dessa mulher duas vezes laureada com o Nobel, caso único na história do famoso prêmio. E conta-nos como Marie descobriu, em condições precárias de pesquisa, o elemento químico rádio, que mudou a história da medicina e da saúde no século vinte.
Ela e o marido, juntos na pesquisa que os levaria a perder a saúde devido à radiação, e que levou Marie às mais funestas consequências, morrendo vítima dos efeitos colaterais. A filha mais velha, Ir;ne, também premiada com o Nobel, não teve destino melhor: morreu em consequência da radiação, aos 59 anos.
Uma mulher que sempre encontrava um meio de viver, de continuar. É hora de repetir aqui a pergunta de Freud: o que quer uma mulher? Rosa responde: uma mulher quer ser o que ela quiser ser; quer ser dona do seu desejo; quer submeter-se apenas às suas afeições, à própria razão e liberdade e à sua moral e ética. Madame Curie queria ser cientista, e foi: queria amar, e amou.
Pagou, no entanto, com a reputação, o elevado preço de ter adentrado o terreno da ciência, território masculino por excelência, e com a vida ; que não tem preço ;, a descoberta científica que hoje salva a humanidade: o raio X. Pensou grande. Humanista, desinteressada em vantagens materiais, pois era meio Joana D;Arc, levou o seu invento para o front na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde realizou, com o auxílio da filha Ir;ne, mais de um milhão de exames de raios-X nos soldados feridos.
E como a luz que irradiava em seu laboratório, a sua inteligência continua iluminando a ciência e a humanidade. Uma luz verdadeira não se apaga: assim como a estrela morta cuja luz segue sua trajetória de brilho por anos e anos... Assim foi Marie, cujo nome verdadeiro era Marya Sklodowska. Mas podemos chamá-la #mulhercoragem.
Vera Lúcia Oliveira é professora de literatura.
A ridícula ideia de nunca mais te ver
De Rosa Montero/Ed. Todavia