postado em 27/07/2019 04:08
Vencedor do Prêmio LeYa 2018 com o romance Torto arado, o baiano Itamar Vieira Júnior é o segundo brasileiro a conquistá-lo, após dez anos de O rastro do jaguar, do mineiro Murilo Carvalho, ter sido escolhido. Obteve a unanimidade do júri do mais importante certame literário português (no valor de 100 mil euros), cuja atribuição o escolheu ;pela solidez da construção, o equilíbrio da narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras femininas, na sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo num contexto dominado pela sociedade patriarcal;.
Concorrendo com outros 347 inéditos de autores dos países de língua portuguesa, Itamar reafirma uma trajetória literária já vitoriosa, iniciada com os livros de contos Dias (vencedor do XI Projeto de Arte e Cultura) e A oração do carrasco (que conquistou o Prêmio Humberto de Campos da UBE/RJ em 2016, obteve o 2; lugar no Prêmio Bunkyo de Literatura 2018, sendo ainda finalista do Prêmio Jabuti 2018).
Torto arado percorre a dramática realidade vivenciada em muitos rincões do nordeste brasileiro, como a seca, a violência contra as mulheres, as práticas escravocratas ainda presentes nas relações laborais e outros tipos de opressão no campo. Uma obra construída meticulosamente com densidade e tensão narrativas, numa linguagem de inflexão reflexiva, que mapeia as nuances e signos de um país que, paradoxalmente, ainda oscila entre o arcaísmo e a modernidade.
Publicado em Portugal no ano passado pela Ed. LeYa, saudado com efusivo reconhecimento pela mídia e crítica, Torto arado possibilitou ao autor visitar o país para uma série de eventos e compromissos literários. Chega ao leitor brasileiro pela Ed. Todavia (SP) num momento em que o Brasil volta a sofrer os abalos de um onda conservadora, com seus discursos de ódio e racismo, quando os avanços e marcos civilizatórios das políticas sociais e de proteção das minorias, conquistados a duras penas nas últimas décadas após a redemocratização, vêm sofrendo duro ataque e ameaças de revogação.
Contrastantes
Torto arado, obra instigante que atualiza nossas demandas por sanar os fossos aviltantes que se agudizam, separam e agridem, é narrada sob a perspectiva feminina, conduzida pelas irmãs Belonísia e Bibiana, personalidades contrastantes em seu modo de viver e reagir, mas igualmente fortes no enfrentamento de seus (des)caminhos.
Por meio delas, deslinda-se toda uma mitologia ligada aos valores de um Brasil que ainda sofre os refluxos dos tempos coloniais. Nascidas no seio de uma família de trabalhadores rurais no sertão baiano, Belonísia e Bibiana têm ascendência escrava e vivem sob o influxo de um quotidiano ainda estigmatizante mesmo depois de quase dois séculos da abolição. É o sentido da subserviência que nunca se desvinculou do imaginário de uma gente condenada ao atraso, a partilhar sempre na escassez as migalhas de um sistema que os aparta e aliena.
O gatilho da história é detonado a partir da descoberta de uma mala albergada sob a cama da avó e o contato com o mistério que ela esconde será um marco divisor em suas vidas. Um pequeno acidente (que deixará emudecida para sempre uma das irmãs) será determinante nos atalhos que bifurcarão seus caminhos e seus modos de enfrentar as vicissitudes comuns, a que muitos estão atados desde sempre na fazenda ;onde enterrávamos os restos do parto e o umbigo dos nascidos. Onde enterrávamos os restos de nossos corpos. Para onde desceríamos algum dia. Ninguém escaparia.;
Belonísia, de personalidade conformista e resignada, permanece ao lado do pai, Zeca Chapéu Grande, enquanto Bibiana, mais arrojada, sensível e refratária àquele mundo de injustiças que os rodeia, segue outro rumo. Passa a compreender a necessidade de uma luta coletiva pela posse da terra e contra as desigualdades e a servidão impostas aos trabalhadores ao conhecer o primo Severo, recém-chegado à fazenda, antenado com os conflitos da região, por ele se apaixona e empreende a fuga que irá desviar sua vida daquela rotina imutável de sofrimento e degredo, pois ;nunca havia conhecido ninguém que me dissesse ser possível uma vida além da fazenda.;
No microcosmo da fazenda Água Negra, sertão da Bahia, onde vivem Salu e Zeca Chapéu Grande, descendentes de escravos e pais das meninas, as famílias que ali trabalham são sempre exploradas, coexistem num sistema de convivência marcada pelos fortes laços com as matrizes africanas e se identificam com seus ritos, como o Jarê, vertente religiosa do Bantu e Nagô, em que mesclam elementos das culturas negras, portuguesas e indígenas, que culminam na prática do Encantado, incorporada pelos seus mentores espirituais.
Nesse particular, o pai de Belonísia e Bibiana é visto como uma liderança mítica naqueles rincões, uma espécie de conselheiro e pacificador dos assuntos que chegam ao seu conhecimento, desde contendas no trabalho, quizílias familiares e problemas de saúde. Sua mãe, a avó Donana, parteira, é uma daquelas criaturas alegóricas que povoam a tradição sertaneja, uma quase entidade dotada de poderes com seus braços ;capazes de entrar no ventre de uma mulher para virar com destreza uma criança atravessada, malencaixada, crianças com os movimentos errados para nascer.;
Atmosfera de aridez
No cerne desse belo romance, está a metáfora de um país que nunca conseguiu resolver seus passivos sociais e históricos e continua a repetir os mesmos erros que o deslocam na contramão do avanço dos povos e nações. É um livro sobre um destino nacional que parece nunca ser revogado, onde a pobreza, a concentração de renda, o predomínio do baronato e do monopólio da força de trabalho e dos latifúndios ainda persistem intocáveis por conta da força de suas elites, cada vez mais impermeáveis às mudanças, à mobilidade social e à alteridade, manipulando, com suas algemas psicológicas, o corpo e a consciência de muita gente.
Nessa atmosfera em que a aridez nunca parece sair de cena, Itamar espelha com uma sedutora beleza narrativa em Torto arado o eterno embate com nossos antagonismos. Um romance denso, tenso, contundente e sensivelmente poético, com sua carga de oralidade, verossimilhança e dimensão humana, que dá vez e protagonismo aos que nunca os tiveram ou perderam por conta de nossas tragédias individuais ou coletivas. E a voz autoral sobressai como um raro facho renovador clareando a cena da atual literatura brasileira.
Escritor mineiro-brasiliense, reside em Portugal
Torto arado
250 páginas/Ed. Todavia