Agência Estado
postado em 27/07/2019 07:00
Ele era conhecido como "Velho Grisalho", por conta das fotos tiradas no fim da vida, que o apontavam como um homem grande, de vasta cabeleira e barba brancas. Mas Walt Whitman (1819-1892) foi muito mais vasto - com a reunião de poemas Flores de Relva (1855), sua obra-prima, o americano revolucionou a poesia, praticamente inaugurando o verso livre e abrindo as portas para talentos que viriam em seguida, como Fernando Pessoa e Ezra Pound.
E, se Flores de Relva ainda é devidamente exaltado, o mesmo não se pode dizer de Dias Exemplares, bem menos conhecido mas visto como o outro lado da moeda whitmaniana, só que em prosa. Assim, torna-se particularmente bem-vinda a edição lançada agora pela editora Carambaia, aproveitando os festejos pelos 200 anos de nascimento do escritor. Trata-se de uma bem organizada seleção de anotações feitas por Whitman entre 1862 e 1882, contendo descrições, trechos de poesia em prosa, listas, pequenos ensaios, alguma consideração sobre política, retratos de personagens ilustres e pessoas comuns, cartas e citações.
"Dias Exemplares é, em termos gerais, uma obra de retrospectiva pessoal que se constrói a partir de um filtro literário muito específico, o da construção da persona poética de Whitman", comenta Bruno Gambarotto, tradutor e autor do posfácio da edição e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. "É possível dizer que Whitman constrói uma retrospectiva a partir de circunstâncias biográficas verificáveis: a primeira metade da vida vivida (1819-1860) em Long Island e nas (então) cidades de Brooklyn e Nova York; os anos da Guerra (1861-1865), que o levam para Washington, cidade em que decide viver e trabalhar no pós-guerra até que, em 1873, sofre o primeiro derrame; e, por fim, a partida para Camden, New Jersey, onde passa a viver com o irmão George, e as viagens que passa a fazer, quase sempre acompanhado de membros de seu círculo de admiradores, que havia começado a construir no pós-guerra em Washington."
A leitura dos textos de tamanhos variados revela o entusiasmado do escritor em relação à Guerra de Secessão, que dividiu o país entre favoráveis e contrários à escravidão negra, como um momento de edificação democrática dos Estados Unidos. É tocante a forma como o poeta constrói um retrato humano e gentil dos soldados feridos, cujo martírio tem "importância maior até mesmo do que os interesses políticos envolvidos".
Gambarotto identifica esta como uma das ideias mestras da construção estética de Folhas de Relva, a ideia da "América" como algo sublime. "Não é por menos que a guerra é o centro das versões finais de Folhas de Relva e de Dias Exemplares: ela representa, da perspectiva romântica e unionista de Whitman, o momento em que o grande encanto americano - a ideia da "América" em seu grande concerto de poder político e natureza - se viu em vias de desaparecer", observa. "A celebração de sua permanência e seus desdobramentos, no entanto, se fazem infinitamente mais presentes em Dias Exemplares: enquanto a poesia final das Folhas versa sobre a morte, a prosa de Dias absorve a experiência do Oeste como renovação e apoteose da vida social e política norte-americana e revelação da grandiosidade de sua natureza."
Questionado pela reportagem se Dias Exemplares contribui para a posição de Whitman como um porta-voz da face jovem e orgulhosa dos Estados Unidos, Gambarotto não concorda. Segundo ele, Dias Exemplares apresenta um Whitman fragilizado pela idade e pela doença e, justamente por isso, não consegue se igualar ao poeta jovem, desafiador e arrogante da década de 1850. "Nem se elevar altivo na figura do bardo americano que havia testemunhado e superado a crise e os horrores da Secessão. Aqui, o ponto de partida é um Whitman convalescente que busca a normalização de sua persona poética dentro de um percurso heroico, do qual o presente da publicação da retrospectiva é parte - afinal, o esforço de curar as cicatrizes do conflito ao lado de soldados feridos de ambos os exércitos é colocada como a razão da doença e da velhice precoce."
Esse percurso heroico, continua Gambarotto, preserva o jovem Whitman, que vai servir de inspiração à poesia e à prosa dos beats e à contracultura dos anos 1960. "Mas Dias Exemplares denuncia posicionamentos do Whitman final e sua adesão ideológica aos Estados Unidos do pós-guerra civil - a potência industrial e imperialista que, dominada por uma oligarquia, completa brutalmente sua expansão pelo continente ao norte."
Para dimensionar a distância espiritual entre o escritor jovem e o depois veterano, Gambarotto exemplifica com duas imagens: em 1855, Whitman celebrou o casamento entre uma índia e um caçador americano da fronteira em Canção de Mim Mesmo; e, em 1876, ele escreveu um poema em tributo a George Armstrong Custer, oficial do exército norte-americano e figura simbólica do genocídio indígena nos Estados Unidos.
Mesmo assim, o Walt Whitman de espírito antirreligioso, aquele que tratou livremente da sexualidade (o que lhe custou mais de um emprego) e que morreu como um poeta malvestido e rebelde, esse ainda figura como porta-voz de uma nação jovem e orgulhosa.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.