postado em 29/07/2019 04:07
Pioneira é uma das melhores palavras para definir Ruth de Souza. Nos mais de 70 anos dedicados à dramaturgia, ela assumiu diversas vezes a alcunha de primeira. Em 1945, entrou para o Teatro Experimental do Negro e se tornou a primeira atriz negra a se apresentar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro com a peça O imperador Jones. Em 1954, foi indicada ao prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza pela atuação no filme Sinhá moça (1953). A nomeação a um prêmio internacional era inédita para uma atriz brasileira. Em 1969 mais uma barreira quebrada: foi a primeira negra a protagonizar uma novela da Rede Globo em A cabana do Pai Tomás, e a partir daí foi a grande responsável por abrir uma porta na emissora para os negros.
Dados como esses demonstram um pedaço da dimensão da perda de Ruth de Souza para a história da dramaturgia brasileira. A carioca morreu na manhã de ontem em decorrência de uma pneumonia, doença que a levou a ser internada na segunda-feira da semana passada no Hospital Copa D;Or, em Copacabana, no Rio de Janeiro, onde faleceu. Até o fechamento da edição, ainda não havia confirmação do local do velório e enterro. A expectativa da família era velar a atriz no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Mesmo com 98 anos, Ruth se mantinha ativa. Neste ano, pôde ser vista na minissérie Se eu fechar os olhos agora, na qual tinha uma participação pequena, mas marcante na trama. No ano passado, interpretou a si mesma na série Mister Brau, ao lado de atores que conquistaram espaço na Rede Globo graças ao pioneirismo de Ruth: o casal Lázaro Ramos e Taís Araújo.
;Me faltam palavras pra te agradecer por tudo que me ofereceu, de ensinamento, de amor a cada encontro, mas principalmente por ter me escolhido como um dos seus filhos. A família que você formou continuará. Nós seguiremos em honra a você;, escreveu Lázaro Ramos, nas redes sociais, como forma de despedida, e demonstrando a relevância da atriz para a maior presença dos negros na televisão. Lucy Ramos, que está atualmente no ar em A dona do pedaço, foi outra a se pronunciar sobre as oportunidades que Ruth criou a toda uma geração. ;Obrigada por ter aberto tantas portas. Ficamos com a responsabilidade de manter seu legado sempre vivo;, publicou nas redes sociais.
Trajetória
A deusa vencida foi a primeira telenovela da atriz carioca. Na época, a estreia foi na TV Excelsior. Anos depois estreou na Globo, de onde não saiu mais, acumulando papéis em folhetins como O bem amado (1973), Sinhá moça (em que participou das duas versões televisivas 1986 e 2006), O clone (2001), Senhora do destino (2004) e Duas caras (2007), última novela. Afastada dos folhetins, apareceu, principalmente, em séries como Na forma da lei (2010) e Se eu fechar os olhos agora (2019).
Apesar de ter ficado conhecida na tevê, foi nos palcos que Ruth de Souza deu os primeiros passos. Ao todo, esteve em 30 produções teatrais. No currículo, espetáculos grandiosos como Calígula (1950), Vestido de noiva (1958), Quarto de despejo (1961) e Anjo negro (1994).
Em 1948, estreou no cinema no longa-metragem Terra violenta e foi acumulando experiências ; cerca de 40 filmes nacionais contam com Ruth de Souza no elenco ; até o mais recente trabalho, de 2018, o filme Primavera, de Carlos Porto de Andrade Júnior, que teve uma duração de 20 anos de gravação.
Ainda neste ano, teve uma homenagem em vida ao ser celebrada pela escola de samba Acadêmicos de Santa Cruz, que desfilou o samba-enredo Ruth de Souza ; Senhora liberdade. Abre as asas sobre nós. Três anos antes, foi celebrada na mostra cinematográfica Pérola negra, do Centro Cultural Banco do Brasil, que, inclusive, passou pelo CCBB de Brasília.Filha de um lavrador e de uma lavadeira, o sonho de ser atriz veio na infância. Mesmo não vendo negros assumindo esse papel, ela nunca desistiu. ;Consegui fazer o que queria, apesar de debocharem de mim no início. Sabia que conseguiria. Quando você quer uma coisa, vai atrás;, afirmou em 2014, em entrevista ao Correio. ;Diretamente, não sofri preconceito, porque sempre o enfrentei. As únicas armas que temos para combater o racismo é a educação, a postura e o comportamento;, disse, à época.
Análise da notícia
Pela liberdade de ser uma grande atriz
; Vinicius Nader
Ruth era atriz rara. Em seu último trabalho na televisão, a série Se eu fechar os olhos agora, interpretou uma mulher muda e presa a uma cama. Ruth não precisava de mais nada além do olhar para emocionar o público. Assim são as grandes.
Mais do que defender com maestria personagens no teatro, na televisão e no cinema, Ruth de Souza abriu caminho para atrizes e atores negros e de várias gerações. Usando o talento como uma arma contra o preconceito, foi galgando várias conquistas. Ela costumava dizer que não era uma ;atriz negra; e, sim, uma atriz.
Ela tinha razão. Ruth começou num Brasil que, na década de 1940, não respeitava a mulher negra que dizia querer ser atriz. Riam daquela filha de lavadeira. Ao lado de nomes como Sérgio Brito, Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Grande Otelo, Fernando Torres e outros, Ruth foi se descolando de rótulos, sem deixar de lado a luta, sempre presente.
Com uma trajetória vitoriosa, ela começou com papéis de escravas e empregadas domésticas, terminou vivendo juízas e pianistas. Com muito mais liberdade, fazendo como cantou a escola de samba Santa Cruz em enredo em que homenageou a atriz: abrindo as asas sobre nós.