Diversão e Arte

Frade canonizado pelo cinema

O religioso Frei Damião é homenageado em documentário do cineasta Deby Brennand, no festival Cine PE

postado em 30/07/2019 04:08
O ator cearense Andrade Júnior, radicado em Brasília e morto em maio de 2019, é um dos grandes chamarizes, pelo talento exposto na recriação de Frei Damião

Na véspera da missa de lançamento da 26; Romaria do Frei Damião, com ;programação popular; prometida pelos representantes da Paróquia de São Joaquim do Monte (Pernambuco), o frade italiano que adotou o Brasil como morada segue dando sinais da eterna força em 2019, que marca o 121; ano da data de seu nascimento (ele morreu em 1997: até o fim do ano, parte de sua história estará representada nos cinemas, no documentário Frei Damião ; O santo do Nordeste. Há 95 anos, o religioso foi ordenado sacerdote, poucos anos depois de ter sido convocado pelo serviço militar, para alistamento diante da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Provisoriamente, se afastaria dos estudos de filosofia.

Enquanto baião, xote e forró, embrulhados com a irresistível celebração dos compositores Luiz Gonzaga e João Silva, levaram a cineasta Deby Brennand a faturar quatro importantes prêmios, com o filme Danado de bom, há três anos, no Cine PE (Recife); a nova investida, com o filme Frei Damião, despertou interesse pela abertura do Cine PE, no qual novamente ela compareceu (ontem), mas selecionada em caráter fora de competição. A popularidade de Damião é inconteste. Icônico, o frei, chegado ao Brasil na década de 1930, se instalou em convento anexo à Basílica da Penha, e até 1997 (quando, aos 98 anos, foi vitimado por fatores decorrentes de derrame cerebral) serviu a vontades de milhares de devotos, caminhando para uma possível beatificação, nos próximos anos.

;Ao longo do filme, tratamos muito sobre sua resiliência e a força espiritual que levou milhares a achar que ele era santo. Um mito;, conta a diretora. Independentemente de testemunhas e das entrevistas captadas, ela expressa a crença nos milagres operados, assegurados pela ;fé;. Frei Damião, como esperado, atingiu missão extra, na execução do filme: católica, sem ser praticante, Deby reconsiderou muitas posturas. ;Depois deste contato, voltei a praticar. Sempre fui uma pessoa espiritualizada e hoje sinto uma profundidade maior com a religião;, comenta. Entre os preceitos dos capuchinhos (ordem à qual o frade serviu) figura a capacidade de abdicar. ;Nessa palavra está o norte dos princípios franciscanos. Conceitos como o de simplicidade, solidariedade e respeito aos animais foram introduzidos pelos franciscanos;, explica Deby Brennand.

Um dos grandes trunfos na realização do longa Frei Damião ; O santo do Nordeste brotou do próprio cinema. Explica-se: um inesperado amante do cinema ajudou a produção, como conta a documentarista. ;Na tradição dos capuchinhos, as missões eram feitas em dupla. A única pessoa que conseguia acompanhar o ritmo de Frei Damião foi também um frade italiano, Frei Fernando. O colega amava cinema e tinha uma câmera VHS, que carregava, aonde quer que fosse, filmando Frei Damião em todas as viagens e momentos privados. Todas essas imagens são inéditas;, afirma a realizadora

Ficção e documentário

Andrade Junior, ator emblemático da capital, tem um dos últimos registros no campo da atuação, em Frei Damião ; O santo do Nordeste. Uma conjuntura deixou ainda mais presente a interpretação de Junior: o foco do filme não se limita aos milagres; mas aprofunda a trama de um homem comum que dedicou a vida a um ideal. ;Sublinhamos a força, o carisma, e a entrega do frei ao povo nordestino. Andrade Junior foi um dos mais talentosos atores com os quais convivi. De uma força artística absurda. Um ser humano leve, alegre e que deixa um vazio no cinema brasileiro. A história da ficção se entrelaça com a linha narrativa do documentário, onde os personagens entrevistados narram a vida do frade;, comenta a diretora. Na infância, ainda chamado Pio Giannotti, o frade é interpretado por Nicholas Baldini.

A região Nordeste, providencialmente (em momento perturbador do cenário político nacional) vem citada, desde o título do documentário. ;Os capuchinhos italianos vinham para missões de catequizar e ajudar os nordestinos, nos lugares mais longínquos e de difícil acesso. Foram inúmeras dificuldades impostas ao frei, primeiramente, na barreira da língua; mas, com o tempo e o convívio, foi sendo superada. Mesmo assim, nunca falou português perfeitamente, apesar de conhecer expressões do nosso povo nordestino. Via tudo como seu desígnio;, avalia Deby Brennand.

Com orçamento avizinhado a R$ 1 milhão, o longa Frei Damião ; O santo do Nordeste leva a diretora, em tempos de contestação de leis de incentivo à cultura, à percepção de que ;nossa cultura é a nossa memória ; e não há como avaliar a memória de um povo;. Sob o manto da generosidade desenvolvido pelo frade, a diretora não duvida de eventual interferência dele, no empoderamento de um filete de esperança para os brasileiros. ;Houve o amor que ele doou ao próximo, a sua vida doada. O maior legado de Frei Damião não era catequizar e sim escutar a população que ia até ele pra confessar, e o interessante é que ele não usava confessionário. Gostava de escutar as confissões frente a frente com as pessoas. E esse contato, aos moldes de um psicólogo, fez com que as pessoas confiassem nele, elas se sentiam mais próximas do sagrado. Se nossas autoridades parassem de só ouvir, e começassem a escutar, seria um presente;, conclui a diretora.



Três perguntas / Frei Jociel Gomes

Quais perspectivas para uma canonização de Frei Damião?
Sou o postulador da causa de canonização, desde 2011. Além disso, fiz a consultoria de conteúdo de filme. Mas o processo para a veneração começou em 2003. Em abril passado, Frei Damião assegurou o decreto de venerável, pelo papa Francisco, dado o grau heroico das virtudes cristãs. Há perspectiva de que, nos próximos anos, haja alcance da condição de beatificado, seguindo trâmites no Vaticano. O frade teria que ser considerado na interseção de um milagre, ou seja, estar em situação em que conceitos de ciência ou medicina não expliquem ou evidenciem circunstâncias específicas de um caso milagroso. Há três possíveis casos à vista.


Dom Hélder Câmara combateu muito a tortura no país, sendo perseguido. A ditadura implicou também com Frei Damião?
A mídia não era tão intensa à época do cotidiano de Frei Damião. Ele figurava mais em jornais, nas revistas, sem internet, à época, e numa eventual e discreta participação na tevê. Não o conheci, pessoalmente, mas meus avôs contavam muito, deste querido homem de Deus. Ele não enfrentou grandes questões de perseguição, quando da ditadura. Seguia uma linha mais tradicional da Igreja, sendo até criticado por não acompanhar a evolução de postura de ala da Igreja que encampou a teologia da libertação, aos fins dos anos de 1970. Dioceses e comunidades não associavam o nome dele à transformação em curso.

Como as imagens de Otacílio Cartaxo, radicado em Brasília, e Machado Bittencourt aderiram ao projeto?
A ótica do filme traz a ideia de homem que caminha para ser santo. Em 2016, foi iniciada a formatação do filme. Vislumbrando um programa de série chamada Caçadores de milagres, a produtora Fábrica Estúdios, que veio a digitalizar muitas imagens usadas no filme, buscava causo, casos, situações de milagre. Acondicionadas no Convento de São Félix (Recife), mais de 250 horas de material em VHS, que passaram por restauração, foram descobertas e traziam até imagens inéditas. Havia, entretanto, lacuna de imagens para a virada dos anos 60/70, quando deparamos com a surpresa. Em 2016, Otacílio Cartaxo (morto em 2018), morador de Brasília que, junto com o fotógrafo Machado Bittencourt, na Paraíba, fixou a meta de ser cineasta, registrando Frei Damião pelo sertão, alcançou o cronograma da produção. Com câncer terminal, ele queria entregar as imagens captadas, impulsionado por um sonho. Teria ouvido nele, de Damião: ;Quero suas imagens no filme;. Eram as que nos faltavam.



Sucessos brasileiros atrelados ao catolicismo

Os dez mandamentos ; O filme (2016)
Dom Hélder Câmara: O santo rebelde (2004)
Irmã Dulce (2014)
Irmãos de fé (2004)
Maria ; Mãe do filho de Deus (2003)



O brilho de Andrade Junior
Foi no Estádio do Santa Cruz, Arruda (zona norte do Recife), em 1997, que uma missa de corpo presente encerrou o terceiro dia de comoção gerado pela morte do italiano Damião de Bozzano, frei que adotou o Brasil como país. Intérprete dele, no filme dirigido por Deby Brennand, Argemiro Gomes de Andrade Junior, morador de Sobradinho até maio passado (quando da morte, por parada cardíaca) teve o velório realizado em outro tipo de centro popular: o Cine Brasília (EQS 106/7). Em 50 anos de profissão, mais de 100 produções audiovisuais trouxeram o irreverente intérprete em cena. Morto aos 73 anos, Andrade Junior, nascido no Ceará, estrelou fitas como Rosinha, A repartição do tempo e Faroeste caboclo. Deixou ainda inéditas as participações em O cartório das almas (de Leo Bello) e King Kong en Asunción (de Camilo Cavalcanti).

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