postado em 03/08/2019 04:08
O Verão tardio, novo romance do escritor mineiro, radicado em São Paulo, Luiz Ruffato, tem como tela uma trama aparentemente simples, vivida, durante seis dias, pelo personagem Oséias, um homem comum que, vivendo em São Paulo, depois de longo período distante da cidade natal, volta ali para rever parentes e antigos amigos, numa tentativa de reatar os laços rompidos de sua remota adolescência e juventude.
No entanto, a partir da chegada do personagem à rodoviária da cidade, uma série de fatos que podem, à primeira vista, parecer corriqueiros e desprovidos de importância literária, vão construindo uma narrativa surpreendente, carregada de teores vivenciais, sociais e existenciais. O que se vai apreendendo da leitura é um tecido de relações familiares e sociais esgarçado com um inequívoco sentido alegórico, que remete a uma reflexão profunda e bem articulada da realidade.
A trama parece surgir a partir de três premissas, não mencionadas, mas implícitas, subjacentes ao texto: a exclusão, a solidão e a depressão. Essas três categorias se interpõem, se imbricam e implicam, no plano simbólico ou metafórico, o dilaceramento das relações. Na cena inicial, quando, ao chegar à rodoviária, o personagem desperta de um pesadelo, como se estivesse sido acometido por um súbito problema de saúde, a metáfora da solidão aparece em forma de um deserto no qual ele se debate com um estranho e inóspito lugar de impossibilidades.
No sonho assombroso, Oséias se depara com algo que lhe parece um oásis, mas que se transforma imediatamente em areia movediça, deixando-o sem chão. Ainda na rodoviária, o personagem reconhece no atendente de uma loja de café, um antigo colega de escola e, ao tentar estabelecer contato, é por esse rechaçado com estupidez. Daí em diante, quase todas as tentativas de aproximação se tornam frustradas.
A personagem Rosana, depois de uma acolhida pouco afetuosa em sua casa, recomenda ao irmão que procure outro lugar para se hospedar. As situações de exclusão, que permeiam toda a narrativa, vão se repetindo de diversas maneiras, em diferentes ocasiões.
Sem permanência
A solidão decorre da exclusão, o que, numa análise breve, remete à teoria de ;modernidade líquida; formulada pelo sociólogo e pensador polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), para quem as relações pessoais e sociais no mundo atual não têm solidez e, por conseguinte, são superficiais, sem permanência.
Para se entender o conceito de modernidade líquida, é preciso rever as propriedades dos líquidos. Estes se caracterizam pela instabilidade, pela falta de coesão e de uma forma definida. A modernidade líquida caracteriza-se, assim, por uma sociedade e um tempo em que tudo é volátil e adaptável, contrapondo-se à década à modernidade sólida da década anterior em que a sociedade era ordenada, coesa, estável e previsível. Essa questão também aparece em algumas passagens do texto de Ruffato, que podem ser entendidas como metáforas, seja na água que escorre entre os dedos, seja nas águas poluídas do Rio Pomba.
A teoria de Bauman encontra ressonância na atualidade também pela influência das redes sociais no comportamento das pessoas, motivado por disputas ideológicas regadas a ódio e intolerância. E, nessa linha de análise, cabe salientar o alcance e a pertinência política do romance de Ruffato, uma vez que Cataguases pode ser vista como microcosmo, símbolo do macrocosmo, que é o Brasil, neste momento de desesperança e de desconstrução de direitos humanos e de ideais democráticos.
Fracos e fracassados
Outra metáfora de efeito inusitado no texto de O verão tardio é a da costura. Nesse tecido roto das relações humanas, chama a atenção o fato de que as mulheres é que parecem ter o domínio do que se é possível alinhavar de proveitoso e sensato. Os homens, à exceção do personagem João Lúcio, que se realiza como empreendedor, tornando-se rico, mas, ainda assim, um recluso, que exclui os parentes e se autoexclui do convívio familiar, são, em geral, fracos e fracassados.
As mulheres, na figura da mãe, uma determinada e habilidosa costureira, é que mantém a família articulada. É o que acontece também com a personagem Izinha, cujo marido alcoólatra nada faz de digno de um pai de família. A forma narrativa adotada pelo autor, sem ser pretensiosamente original, com seu fluxo acelerado, com repetições minuciosas de certos fatos e situações, sem descrições, lembra o ritmo pedalado da máquina de costura.
Outro recurso estilístico de efeito extraordinário neste romance é a forma como o autor mistura o passado com o presente, de tal modo que, num mesmo período, antes do ponto final ou de qualquer outra indicação gráfica, passa-se da narração de um fato em curso para a de um fato lembrado, ou seja, o fluxo da memória não interrompe a narração, mas nela intervém e com ela se confunde, no estado de espírito do narrador, como a tentar remendar a atualidade rota com retalhos pretéritos, ou ainda, como as águas de um rio afluente se tornam as águas do rio no qual deságuam.
Resta considerar o problema da depressão. Pode-se perceber que Oséias, apesar da iniciativa de tentar reavivar o passado como fio para reconstituir o presente, dá constantes sinais de depressão. Ele carrega a culpa atormentada pelo suicídio da irmã. E, no decorrer da narrativa, mostra-se apático, sem buscar diversão ou qualquer estímulo para o prazer ou a alegria. E a depressão, certamente, é o que conduz à decisão final do personagem, que parece premeditada, como se pode deduzir de alguns índices de leitura em certas atitudes de Oséias. Nem mesmo o encontro com a ex-namorada, a qual tenta atraí-lo e seduzi-lo, oferecendo-lhe oportunidade para um momento de intimidade, no caso, o sexo, o afasta de sua rotina ensimesmada e monótona.
Valor estético
Passagem intrigante é a que relata o encontro com o irmão João Lúcio, no final do livro. Ambos bebem cerveja. O descarte das latinhas vazias no saco de lixo preto, repetido exaustivamente, anuncia, ou prenuncia, de forma simbólica ou metafórica, algo como morte, luto (simbolizando o descarte da vida, além de o preto do saco de lixo se associar semanticamente com luto). Nesse caso, a liquidez da vida vai culminar, principalmente, na água em que Oséias dissolve os comprimidos e, também, nas cinzas que restam na churrasqueira, onde ele, aliás, queima seus documentos, matando ali sua identidade. As cinzas, nesse caso, são uma metáfora sugestiva dos restos mortais do personagem.
Enfim, Ruffato busca no homem comum, cidadão quase anônimo, perdido na própria insignificância perante o mundo, matéria para um romance que transcende o corriqueiro e o cotidiano para alçar-se à condição de obra literária de valor estético e humanístico só atingido por escritores do porte de Graciliano Ramos ou de Raduan Nassar, visto que propõe, de maneira sutil, mas intensa, a reflexão profunda sobre a existência e sobre as relações humanas nestes tempos sombrios. Afinal, o verão tardio é um outono antecipado. Outono, metáfora bastante explorada como ocaso da vida.
* Wilson Pereira é poeta, contista, cronista, ensaísta e autor de livros infantis e juvenis, com 17 livros publicados.
O verão tardio
De Luiz Ruffato. Páginas: 232. Editora: Companhia das Letras. Preço sugerido: R$ 49,90.
Quem é...
Mineiro de Cataguases, Luiz Ruffato é autor de livros como a pentalogia Inferno provisório e o aclamado Eles eram muitos cavalos., obra que lhe rendeu o prêmio APCA e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, em 2001. É formado em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).