postado em 11/08/2019 04:07
Alma contemporânea em cena
;Devemos compreender quando o certo é o certo. Devemos compreender quando o errado é o errado e devemos compreender, principalmente, quando o certo é o errado e quando o errado é o certo.; Desnuda, presente de corpo e alma, e sozinha no palco, a atriz Clarice Niskier desconstrói e reconstrói conceitos milenares da civilização humana por meio de parábolas e tradições judaicas.
Há 13 anos, ela tensiona palavra, movimento e luz na peça A Alma Imoral, uma adaptação para o teatro do livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Com um pequeno aparato cenográfico, o enredo, interpretado por Clarice com firmeza, ganha outras dimensões e reverbera na plateia. Seja no individual, seja no coletivo, o público é levado a refletir sobre obediência e desobediência, certo e errado, moral e imoral. Em entrevista ao Correio, a atriz comenta sobre os anos na estrada, as diferenças de contexto social e político, a relação com o público e o impacto do trabalho.
Por que da escolha do livro do rabino Nilton Bonder?
Fui a um programa de tevê divulgar uma peça que estava fazendo chamada Buda. Apesar do nome, era uma comédia, um monólogo de uma mulher em busca do amor. Terminou que o debate caminhou para um assunto ligado à religião e, quando me perguntaram qual a minha, respondi: judia budista. Pouco depois, recebi um fax de uma telespectadora me esculhambando. O rabino Nilton também estava no programa, para falar do lançamento do livro dele, e saiu em minha defesa. Sem me conhecer. Sem saber quem eu era. Aquilo me tocou muito. Fiquei tão impressionada com a atitude dele, sincera, autêntica. Fui agradecer a consideração e a sincera opinião. Ele me apresentou o livro A Alma Imoral e eu fiquei apaixonada. Tinha tudo a ver com a resposta dele de acolhimento com o outro, das experiências com o outro. Quando tomei coragem, liguei para ele e perguntei: posso adaptar seu livro para o teatro? Passei dois anos fazendo essa adaptação.
Com pouca cenografia e figurino, a exigência do ator é maior?
Exige, mas toda peça exige muito. Não por isso, não porque você não tem um aparato cenográfico muito grande. Exige muito, porque o conteúdo dela é muito forte. Preciso estar muito concentrada para fazê-la. O desnudamento, preciso que as pessoas percebam a alma ali. O que exige é essa qualidade de concentração, independente da forma como eu faço.
Treze anos depois, por que os dilemas do rabino seguem tão atuais?
Acho que daqui a 10 mil anos seguirão atuais. São questões humanas muito profundas, ligadas a nossa psique. O ser humano sente dentro dele que tem dois comandos, a obediência e a desobediência, e são comandos que preservam a vida. Ele precisa do discernimento para saber quando um ou o outro é que vai preservar a vida. O livro e o texto propõem que a verdade absoluta é destrutiva para o ser humano. Viver com verdades inquestionáveis pode causar uma ruptura que não preserva a vida. É preciso discernimento entre a verdade absoluta e o processo contínuo de consciência. Não existe uma cartilha comportamental. A gente discute que há o que é certo e o que é errado em determinado momento. Precisamos ter clareza e lucidez para saber distinguir entre essas dualidades. Falamos de questões e valores que vão nortear as escolhas. Muitas vezes, a moral não vai preservar a vida. O livro e a peça ampliam sua consciência do que é ser humano.
Como é falar de moral, sobretudo, hoje em dia?
Fico feliz de levar esses assuntos ao palco de uma maneira muito liberta, longe das ideologias. Existem as verdades ideológicas, as científicas e as mercadológicas, mas existem outras verdades que são ligadas à história do ser humano. Falar de ética, de valores a partir dessas questões que não são ideológicas, científicas, que transcendem a esse campo do saber humano, eu acho um privilégio. Sai de uma disputa, de uma dualidade, de um lugar estreito. É como se você pudesse ir para outro tempo trabalhar essas questões sobre outro tempo. Ao se deparar com histórias de dois, três mil anos, você se amplia, vemos como nossos antepassados pensavam.
O que sente que mudou de 2006 para hoje? E o público?
Cada dia é um espetáculo diferente. Dependendo do ano que estou fazendo, o que está acontecendo, certas passagens da peça se destacam mais do que outras. A qualidade interna, a memória profunda, com as mudanças externas fazem com que o espetáculo fique renovado de entendimento, de sentido, de descobertas, de surpresas. Não é à toa que muita gente volta a ver a peça várias vezes. Do ponto de vista do público, sinto que houve uma renovação quanto à idade. Nos primeiros cinco anos, a peça atingiu um determinado público. Depois, a peça se renovou muito e acho que, hoje, vão pessoas mais jovens do que antes. Agora, a peça atingiu dos 15 aos 90 anos. Associo esse interesse do público mais jovem à longevidade da peça. Como viajei muito, vou a muitos lugares, a questão da obediência, da desobediência, do certo e errado, da tradição e ruptura, são temas universais. É uma peça muito humanista, sempre emociona as pessoas. Vai refletir sobre sua vida pessoal e coletiva de alguma maneira.
O que sente do público depois da peça e o que mudou em você nesses 13 anos de espetáculo?
As pessoas saem mais tolerantes, instrumentalizadas para o diálogo, sensíveis para a escuta. O silêncio que se faz na peça é de quem está coletivamente escutando. O silêncio é um só. Isso te dá uma sensação de que a utopia é possível, que o sonho não acabou, que os seres humanos podem se entender, sim. É um esforço de tolerância, de compreensão. Na minha vida, a peça atingiu demais. Mudou minha maneira de conversar com a tradição. Hoje, tenho muito mais maturidade para compreender a importância, o valor e a qualidade de pessoas mais tradicionais que eu e compreender a beleza delas.
Como foi lidar com a nudez?
Não há nudez na natureza. Deus só reconhece a nudez do homem na vergonha que o homem sente de sua própria nudez. Essa frase foi tão impactante com tudo o que vem depois que só conseguia, como atriz, me desnudar. Queria mostrar que esse corpo da cultura é um corpo onde está contido a sua essência e a sua alma. E que para além dessa nudez cultural, existe a alma imoral e que o bonito é que acho que, de alguma maneira, consigo sentar naquela cadeira nua e com o tempo ninguém está mais vendo a nudez, está vendo a alma. Não há dicotomia entre corpo e alma. São duas dimensões humanas integradas e a integração te dá humanidade.
A alma imoral
Até 25 de agosto, sextas-feiras e sábados às 21h, e domingo às 19h, no Teatro Brasília Shopping (SCN Q5 Bloco A). Ingressos: R$ 100 (Inteira) e R$ 50 (Meia-entrada). Classificação indicativa: 18 anos