Diversão e Arte

Um choque de realidade

Filme do diretor brasiliense Iberê Carvalho, O homem cordial abre a mostra competitiva do Festival de Gramado

postado em 14/08/2019 04:08
Iberê Carvalho com Paulo Miklos, em momento de bastidor de O homem cordial

O filme brasiliense O homem cordial, que, na próxima sexta-feira, abre a mostra competitiva do Festival de Gramado (RS), carrega na sonoridade e sugere um tom de enredo no qual pesa a agressividade. ;Não temos ideia de como vai chegar ao público;, conta Maíra Carvalho, a produtora e responsável pela direção de arte do longa assinado por um dos irmãos dela, o diretor Iberê Carvalho (do multipremiado O último cine drive-in). Ao lado dos curtas Invasão espacial (de Thiago Foresti) e O véu de Amani (de Renata Diniz), O homem cordial traz uma amostragem do sucesso recente alcançado pelo cinema brasiliense no circuito dos festivais.

;Estamos na hora de colheita. É tudo resultado da política de fomento para as artes, implantada há muito tempo no Brasil. O momento é muito interessante, a gente percebe que o retorno em cinema pode não ser imediato, mas chega. Com o FAC (Fundo de Apoio à Cultura) e o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) podemos produzir filmes com mais recursos. É o resultado de uma política nacional, criada há 14 anos. Antes, se contava apenas com o FAC, e agora, cerca de 30 % de todos os editais de cinema trazem a inclusão das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (o chamado Conne);, explica Maíra, que chegará à Serra Gaúcha com o prêmio Kikito no currículo, vencido há quatro anos por O último cine drive-in.

;O filme O homem cordial traz o oposto do que foi visto em O último cine drive-in, em todos os sentidos;, comenta Maíra. Saem a delicadeza do retrato da retomada da relação entre um pai e filho, com resgate de um amor incondicional, sai a simplicidade e entra o peso de uma carga dramática. Na trama do novo filme, se afirma uma encruzilhada para o personagem Aurélio (Paulo Miklos), aos 60 anos, petrificado pela reação de uma plateia de show investida de ódio gerado por fator político.

Execrado pela repercussão de um vídeo, ele desperta o interesse de uma jornalista empenhada pela busca da verdade, no exame da origem do material que traz contexto violento. ;O filme tem 90% das imagens em noturnas, com câmera na mão. Reina um clima de intolerância e de ódio, não é nada solar, brinco que é um filme lunar, mas energético;, explica Maíra. Thalles Cabral, Murilo Grossi, Bruno Torres, Fernanda Rocha, André Deca e a rapper MC Sofia estão no elenco.

Além do irmão Iberê, Maíra contou com a parceria profissional da irmã Joana Ferreira, designer gráfica do longa-metragem. ;Há o amor enorme, mas nem sempre trabalhar junto é fácil ; há o lado bom da confiança plena, mas intimidade em excesso pode ser prejudicial;, avalia a diretora de arte, há 17 anos ligada profissionalmente ao irmão. Rodado em São Paulo, ;pela necessidade de um cenário de metrópole com arranha-céus e intensidade de vida;, O homem cordial ainda serviu de ponte para maior internacionalização dos profissionais de Brasília: conta com a colaboração de Pablo Stoll, celebrado roteirista uruguaio.



Três perguntas / Iberê Carvalho


Seu filme explora o agravamento do linchamento público. Qual a perda humana, entre tantos justiçamentos empreendidos pela sociedade?
A grande tragédia que todo esse processo de descrença nas instituições e de institucionalização da violência que estamos vivendo é, sem dúvida, o do extermínio de jovens negros da periferia. Linchamento não é e nunca foi um ato de justiçamento. O Vitor Martins Melo, de 17 anos, por exemplo, foi linchado até a morte após ser acusado de ter roubado um celular. O escândalo da imprensa não era um menino ter sido linchado, mas o fato de terem linchado um inocente. É preciso que voltemos a nos horrorizar.


A Justiça tem funcionado no Brasil?
Acho que nunca houve uma verdadeira democracia no Brasil. Somos um país extremamente desigual, uma herança terrível da escravidão que até hoje não conseguimos superar. Com desigualdade, herdamos também um ódio de classe patológico, que tem se transformado em política de governo.


Que agenda acredita ser relevante para discussão em Gramado? Vocês estão mobilizados?
Acho que é inevitável e urgente que todos que trabalham no audiovisual nesse país se posicionem de forma firme e didática para qualificar e aprofundar o debate a respeito das políticas públicas de fomento ao setor. E Gramado é uma baita vitrine. É preciso aproveitar toda oportunidade para informar as pessoas que o setor do audiovisual brasileiro injeta mais de R$ 25 bilhões por ano na economia. São mais de 13 mil empresas, mais de 300 mil empregos. Para cada R$ 1 investido pelo Estado, o audiovisual gera um retorno de R$ 2,6 em impostos. Todos os países grandes sabem que é um setor estratégico, não apenas para formação de uma identidade nacional, mas porque a nossa própria cultura é a única coisa que apenas nós podemos vender.



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