Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Ronaldo Fraga: ''O ato da escolha da roupa é um ato político''

Em entrevista ao Correio, Ronaldo Fraga fala da importância de usar na moda questões contemporâneas e que possa unir "Brasis" tão distintos

Na capital da política, o estilista Ronaldo Fraga afirma: ;O ato da escolha da roupa é um ato político. Tudo o que a gente for fazer tem que falar, tem que contar alguma coisa, tem que provocar. Houve um tempo em que ter uma boa modelagem, um bom tecido e um bom desenho bastavam. Só que hoje, diante desse mundo caduco em que vivemos, desmemoriado, o desafio é falar coisas que te deem a mão para ir para outro lugar;.

De passagem por Brasília para participar da segunda edição do Brasília Cidade Design, o estilista compartilhou com o público histórias que tem construído na passarela como expressões culturais e políticas. Desde 1996, Ronaldo Fraga transforma tecidos em telas e o corpo em escultura. Sob o olhar criativo e uma identidade única, deu vida a Nelson Rodrigues, Arthur Bispo do Rosário, Zuzu Angel, Carlos Drummond de Andrade, Portinari e Marielle. Uma mescla de arte com cunho político. Da passarela, foi parar em galerias de arte.

;Acho que a arte tem o poder de enxergar poesia em terreno árido e, às vezes, a moda também. De olhar para determinado lugar, ver aquela terra devastada, uma sementinha e, com jeito, ver que ela pode crescer e se tornar algo frondoso;, descreve antes de apresentar dois vídeos. O primeiro do desfile El día que me quieras, no qual abordou o respeito aos transexuais, e, o segundo, mostrou sua união com as bordadeiras da região de Barra Longa, devastada pelo rompimento da barragem em Mariana, em Minas Gerais.

Com poética e presença marcantes, Ronaldo Fraga conta que foi visto muitas vezes como ;carnavalesco;, adjetivo que, para o estilista, soava como elogio. ;Tenho certeza que a educação e a formação não estão só na cadeira da academia. Estão nos desfiles da de escola de samba, onde aprendi muito na década de 1970, podem estar em uma coleção de moda, em uma receita. A minha busca foi instintiva por um lugar em que me sentisse útil, que o meu ofício fizesse valer a existência dele;, declara. Um apaixonado confesso da arte popular, o estilista enumera como referências o escritor Mário de Andrade e a arquiteta Lina Bo Bardi. ;Eu me sinto um turista aprendiz;, se define, citando o livro do modernista. Entre os nomes da contemporaneidade, destaca Adriana Varejão, Beatriz Milhazes, Rosângela Renó, Noemisa, no Jequitinhonha; Oziel, na Paraíba; e J. Borges, em Pernambuco.


ENTREVISTA / Ronaldo Fraga


Por que usar a moda como expressão cultural e política?

As palavras ;design; ou ;designer; entraram na moda, e as pessoas sempre as associam a fazer um desenho diferente, um desenho torto, um desenho limpo. Mas elas associam muito pouco o desenho a algo que eu acho que é mais marcante, que justifica a sua existência: quando reflete o tempo em que estamos vivendo. O design é um documento do tempo que a gente está vivendo, e ele traz o olhar pessoal do criador. Além de tudo, claro, é um vetor econômico, antropofágico, histórico, mas é um vetor político também. É por essa porta que eu acho que o design pode ser revolucionário. Quando ele fala de certas coisas, estimula o olhar das pessoas para um lugar que, normalmente, elas não olham e eu acho que aí que ele é transformador. E, pensando, sobretudo, no tempo que estamos vivendo, a gente não precisa produzir mais roupas. A gente tem roupa demais, para 300 anos. Então, o desafio maior agora é que o design, além da sua forma em si, tem que falar, tem que pensar, que comunicar, tem que protestar.


A moda, por estar próxima ao dia a dia das pessoas, oferece a facilidade de trabalhar essas temáticas?

Ela tem esse poder, mas as pessoas não descobriram ainda. A tatuagem que você usa, as cores, o personagem que você cria e as armas de Jorge que você veste para poder ir à luta, aquilo que te dá coragem para seguir viagem quando a noite vem, tudo. Quando você descobre que a moda pode ser isso, ela se torna mais divertida e justifica a existência dela. O ato da escolha da roupa, por si só, é um ato político, e não estou falando da política (tradicional), mas a política mais ampla, como você se insere no mundo, como você pensa o mundo. Esse é o grande desafio.


A sua obra hoje envolve o artesanato e a cultura popular. Você tem trabalhado com pequenas comunidades como as bordadeiras de Barra Longa. Por quê?

Acho que qualquer profissional pensa assim, qual o meu dia feliz? O dia em que você trabalha e justifica a existência do seu ofício, a sua existência como um elemento de comunicação desse ofício. E eu acho que nós temos um desafio no Brasil, que é unir pontes desses ;Brasis; que, entre si, têm uma distância oceânica. Não interessa falar só do design para a elite consumidora, mas quando você pega essa elite consumidora e a insere em um universo aonde ela nunca pensou em ir, por meio do produto que ela consome e vice-versa, aquela cooperativa que faz um produto e vai ser consumido pela elite em outra ponta. Esse é o papel do design, criar essas pontes por entre ;Brasis; tão distintos.


O que podemos esperar dos seus próximos desfiles?

Adoro as coleções biográficas, determinadas pessoas da literatura, gosto das coleções chamadas etnográficas, quando vou para determinado lugar e desenvolvo um projeto. Só que estou muito movido pelas coleções de cunho político, que fala do Brasil de agora. Entre as questões fundamentais, destacaria a questão ambiental, a diversidade sexual e a questão de uma ditadura que se avizinha. São as três questões que eu acho que são urgentes para a gente prestar atenção.


Você sempre foi um pioneiro ao trazer para a passarela a diversidade e questões da arte e da política. É esta a sua visão?

Não paro para pensar muito nessas questões. Mas lembro um dia que era muito criticado por contar histórias nos meus desfiles. Falavam que quem faz isso é carnavalesco, como se isso fosse pejorativo e, para mim, não é, porque muito da cultura do que eu vi foi acompanhando os desfiles das escolas do Rio de Janeiro. Foi ali que eu tive o primeiro contato com questões do Norte, com Carlos Drummond de Andrade, etc. Acho que a moda pode ocupar esse papel.

Como avalia a formação dos novos profissionais da moda?

Sempre fui muito crítico das escolas de moda no Brasil. O Brasil é o país que mais tem escolas de moda no mundo, e se bater todas no liquidificador, não dá nem meio copo. Agora, por exemplo, fui contratado pela UniBH para pensar, como curador, uma graduação e uma pós-graduação. Desenhei esse curso como achava que tinha que ser. Ele é único na América Latina, um curso onde a academia estará de braço dado com o mercado, isso é muito importante.


O que te lembra Brasília?

Brasília é um lugar único no Brasil. É aqui que as raças se encontram. É a cidade mais mestiça do Brasil. O Nordeste encontra com o Sul, que se encontra com o índio. Todas as culturas e os sotaques do Brasil estão aqui. Eu acho que é daí que a Brasília do futuro vai se reinventar. Não essa Brasília de Niemeyer, essa é um museu a céu aberto. Mas onde ela pode olhar para o futuro são as questões, a valorização e a luz que ela pode lançar sobre a mestiçagem brasileira.