Nahima Maciel
postado em 28/08/2019 07:00
Furacão Carmen é uma peça sobre dois homens que revisitam o passado para compreender o futuro. Os dois se encontram para conversar no Malecón de Havana (Cuba). Falam sobre questões existenciais, de identidade e origens, mas também sobre o amor. O dramaturgo argentino Santiago Serrano escreveu o texto especialmente para o brasileiro Murilo Grossi e para o português António Revez, juntos em cena para viver os personagens cujas origens têm ligação com Cuba.
Antes de começar a escrever, há cerca de quatro anos, Serrano fez uma espécie de entrevista com cada um dos atores. ;Por casualidade, mas não tanta, tanto eu como António queríamos falar sobre a mesma coisa, que é a questão da utopia, até que ponto o ser humano continua inteiro na sua integridade sem o advento da utopia, do sonho, da paixão, do porvir, do querer, exatamente num momento em que a gente percebia esse caminho que a nossa realidade estava seguindo, o de uma distopia, de uma destruição absoluta da esperança;, conta Grossi.
[SAIBAMAIS]Para Revez, o texto de Serrano faz um diálogo com a contemporaneidade e com questões universais, mesmo partindo da subjetividade dos personagens. ;O texto é de uma grande atualidade, principalmente para a nossa geração, que tem por volta dos 50 anos, porque, quando olhamos para trás, vemos pouca coisa e, quando olhamos para a frente, é pior;, diz o ator. ;Para mim, como português, tem coisas que eram dados históricos fechados em um tempo e espaço e que ganham hoje uma dimensão impensável há uns tempos atrás, como o avanço da extrema direita, a forma como tratamos os refugiados, como um continente com recursos e possibilidades econômicas deixa morrer tanta gente sem os receber.;
Murilo Grossi também vê conexões entre o texto e a realidade brasileira. Assim como enxerga uma atualidade em Mãe coragem, peça de Bertold Brecht cuja temporada ele acaba de encerrar em São Paulo sob direção de Daniela Thomas. Durante os últimos anos, Grossi tem se dedicado mais ao teatro e ao cinema. Ele está em O homem cordial, de Iberê Carvalho, e em Rodantes, de Leandro Hbl. ;Esse momento do país está muito complicado, muitos projetos estão parados, esperando aporte de verba, e ninguém consegue levantar dinheiro para fazer nada. Esse é um momento de resistência, se conseguir fazer algo pequenino, já é muito;, diz o ator de 55 anos, que conversou com o Correio sobre Furacão Carmen e sobre o momento atual do teatro brasileiro.
Furacão Carmen
De Santiago Serrano. Com Murilo Grossi e António Revez. 29 de agosto, às 20h, e 30 e 31 de agosto, às 17h e às 20h, no Teatro Sesc Garagem
Entrevista Murilo Grossi
Furacão Carmen trata do encontro entre dois homens, de reflexões sobre o passado e o futuro, mas também é uma peça sobre a amizade...
No fundo, é uma grande elegia sobre a grande realização utópica, que talvez se dê através dessa categoria dos relacionamentos humanos que é a amizade, essa amizade profunda, essa empatia involuntária que você tem por alguém. Qualquer relação só se realiza através da amizade, qualquer relação. Essa amizade profunda, esse enxergar no outro a si mesmo, revelar-se no outro, resolver-se no outro. No fundo, a peça fala disso, e essa talvez seja a grande realização utópica, a necessidade do outro.
E como você vê essa questão utópica nos dias de hoje?
Essa conversa com o Santiago Serrano começou em 2014. De lá pra cá, a situação só se agravou e chegou a um ponto quase do insuportável. Hoje, a principal característica é essa, essa desilusão. E, se você olha para o Brasil, pelo amor de deus, não coloque um precipício na minha frente que eu pulo. A situação que a gente vive hoje no Brasil é séria e quase epidêmica de uma depressão coletiva. Você olha para o lado e não sabe o que está lá. Se confia, se não confia. Há 20 anos, se a gente visse cenas de governador dando pulinhos porque fuzilou um sujeito pelas costas; É tão estarrecedor; E hoje, isso parece normal.
Por que chegamos aqui?
O Brasil é um país que não deu um salto civilizatório. O Brasil ainda vive no seu passado sombrio de 350 anos de escravidão e nunca foi, de fato, uma democracia. Tentou ser uma democracia formal, deu passos grandes nesse sentido, mas não teve uma ruptura civilizatória. A barbárie é uma característica da humanidade, é perigosa e está sempre na espreita. E, no Brasil, sempre existiu. É só perguntar para qualquer mulher, cidadão periférico, negro, homossexual ou com necessidades especiais se ele acha que o Brasil é uma democracia. Não é. Temos que parar com essa maneira hipócrita de falar em nome de minorias. É a imensa maioria. Cerca de 70% da população brasileira é periférica, negra, 55% é feminina. O Brasil é um país que existe para uma pequena elite e para uma classe média imbecilizada que reproduz essa elite. Quando teve um ensaio discreto de distribuição de renda, muito pequeno, de um ajuste social, essa elite capitaneada por soldados de uma classe média ignorante se revoltou. Contra o quê? Tinha emprego, salário bom, país indo bem, 6; economia do mundo, crescendo;. Mas o que era revolta? Um preto sentado do meu lado no avião. Ir ao cinema e ter que dividir espaço com a filha da empregada. É uma coisa tão absurda! O Brasil não teve um salto civilizatório.
O Cena Contemporânea quase não sai este ano. Como vai ficar o teatro no Brasil nos próximos anos?
A situação do teatro e do festival é reflexo de tudo isso. Sempre que você tem uma afirmação de normalidade na não normalidade e com aparência de democracia, é pior. Com a pseudolegalidade, você enfia goela abaixo de uma sociedade inteira a estupidez, a barbárie, como se fosse normal. E o primeiro setor perseguido é a cultura, porque é onde está a reflexão mais espontânea, mais necessária, mais profunda, mais sensível. Daí, você arruma mil justificativas orçamentárias. Hoje, fazer teatro no Brasil é um ato de resistência necessário e imprescindível. Fazer um festival como o Cena Contemporânea é um ato de resistência.