postado em 08/09/2019 04:19
;Mário de Andrade era, portanto, um oceano;. Assim definiu o jornalista e escritor Jason Tércio na introdução do seu novo livro, Em busca da alma brasileira - biografia de Mário de Andrade. Dotado de uma curiosidade intelectual sem precedentes, o modernista materializa uma série de definições: poeta, romancista, contista, cronista, crítico de arte, musicólogo, folclorista, fotógrafo, professor, colecionador de arte, epistológrafo, jornalista, bibliófilo, ícone da vanguarda modernista e diretor do primeiro órgão cultural no Brasil. Assim, era uma vasta extensão cultural e brasileira que, até hoje, reverbera no país e fora dele.
Em contato com a rica literatura brasileira durante um mestrado na Universidade de Brasília (UnB), Tércio notou que faltava uma biografia desta figura múltipla. ;O que existem são livros de memórias de pessoas que o conheceram, cartas que ele escreveu e fragmentos de informação biográficas, mas não uma biografia no sentido completo da palavra. Então, comecei a juntar informações, levantamentos e quando foi, mais ou menos em 2010, que comecei a escrever o livro efetivamente;, relembra o escritor.
Durante anos, Tércio revisitou documentos, jornais da época, fotografias e o que ele chama de fontes primárias para traçar a história não apenas do modernista, mas também de um período histórico, social e político brasileiro. ;Cada vez que eu pesquisava mais, ficava bastante empolgado. Descobri que havia equívocos nas informações disponíveis. Descobri muitas informações interessantes, inclusive sobre a família. O primeiro capítulo tem muitas coisas inéditas;, detalha. Os arquivos do conservatório musical onde Mário foi aluno e lecionou foram essenciais nessa reconstrução. Ao serem disponibilizados ao escritor, revelou dados valiosos.
Entre as discordâncias, Tércio pontua dados sobre o pai de Mário de Andrade e sua família em geral. ;O nome da avó vinha sendo publicado errado, assim como a profissão do pai. Muitos falam que o pai tinha sido jornalista, mas ele foi tipógrafo e dono de tipografia;, esclarece. Também diziam que Carlos Augusto tinha apenas uma irmã quando, na verdade, teve seis irmãos. O encontro com outro modernista, Oswald de Andrade, é também um aspecto elucidado pelo biógrafo. ;As informações falam que os dois se conheceram em 1917 em uma cerimônia no conservatório musical, mas encontrei indícios fortes de que eles já se conheciam bem antes. Oswald, além de amigo do irmão de Mário, era repórter e cobria essa área cultural e o conservatório era um ponto de encontro dos jovens da época;, afirma Tércio.
Os contrastes da personalidade de Mário ; ousado e tímido, recatado e escandaloso, confessional e comedido, modesto e vaidoso, singular e plural ;, a sua relação com a Igreja Católica, o dia a dia na capital paulista e com a família e a rudimentar cena cultural da cidade que ganhou forças anos depois. Todas são imagens apresentadas textualmente de maneira minuciosa e repleta de dados pelo jornalista. A leitura permite reconstruir ainda um Brasil que engatinhava. Informações sobre a política do café com leite, na qual Minas Gerais e São Paulo revezavam no poder, e a presença de uma classe média com seus bailes e festas complementam a narrativa, assim como os escritos do modernista, trazidos por Tércio de maneira pontual e objetiva para tratar determinado assunto.
Além de documentar a vida de Mário e o contexto no qual nasceu e viveu, a biografia também dedica algumas páginas aos integrantes do Modernismo Brasileiro. Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, entre outros. Como estavam desenvolvendo seus trabalhos, como se encontraram, como surgiu a ideia de criar no país um movimento que ocorria em Paris são algumas das perguntas respondidas pelo jornalista. No capítulo dedicado à Semana de Arte Moderna, o autor faz uma retrospectiva da origem do fato e explica. ;Há muitas versões contraditórias, principalmente, de quem teve a ideia. A versão predominante é que foi o Di Cavalcanti, mas, na verdade, eu questiono essa versão. Foi uma ideia em conjunto, de um grupo que estava antenado nas mesmas ideias. Então, coloco uma versão alternativa que, para mim, é a mesma coerente;.
O biógrafo ultrapassa a gênese do movimento e conta a revoada dos artistas para Paris. ;Por coincidência, a maioria foi para a capital francesa. Esse período também é inédito na bibliografia sobre o Modernismo. Pesquisei isso em correspondências inéditas do próprio Di Cavalcanti, da Tarsila, da Anita e do Mário, porque a maioria das cartas dele que foi publicada foi que ele escreveu, a correspondência ativa, não a passiva. Sem dúvidas, esse capítulo da história mereceria um livro à parte;, comenta. Para Tércio, Mário foi o principal líder do Modernismo, inclusive reconhecido pelos colegas. ;Embora ele recusasse esse papel até pelo temperamento. Ele era muito tímido e não se sentia vocacionado para líder; justifica o biógrafo.
Apaixonado pelo Brasil e, principalmente, pela brasilidade, o poeta abriu caminho e foi um grande mentor para muitos artistas. Paulicéia Desvairada inaugurou uma nova escrita no país. ;Ele não foi aquele modernista nacionalista que dispensava as coisas do Brasil, voltado para a vanguarda europeia. Pelo contrário. Era muito voltado para questões brasileiras e nacionais muito antes da eclosão do Modernismo. E, nesse aspecto, ele se distanciou dos colegas dele; afirma Tércio. No livro, o biógrafo traz a citação de Mário: ;Devemos, é certo, conhecer o movimento atual de todo o mundo, para com ele nos fecundarmos, nos alargarmos, nos universalizarmos; sem porém jogarmos à bancarrota a riqueza hereditária que nos legaram nossos avós;.
QUATRO PERGUNTAS / Jason Tércio
Quais foram as principais dificuldades que você encontrou para escrever essa biografia?
A maioria das biografias que se publica atualmente é sobre pessoas que faleceram há não muito tempo; então, muitas pessoas que conheceram o biografado estão vivas. Logo, a técnica, o método inicial de um biógrafo é entrevistar parentes e amigos que conheceram aquela pessoa. No caso do Mário de Andrade, havia pouquíssimas pessoas, basicamente, encontrei o Antonio Candido e um garçom de um bar que o Mário frequentava. Mas, nem me preocupei muito com isso, porque, além disso, as pessoas que estão vivas podem não estar com a memória muito clara. Então, minha preocupação primeira e a maior dificuldade foi onde encontrar as informações verdadeiras. Felizmente, com a internet tive acesso a jornais da época, por exemplo. Informações sobre a família do Mário eu consegui muito na imprensa da época. Eles publicavam tudo naquela época. Tudo isso foi muito útil. Mas, claro, que não confiava na primeira informação. Sempre procurava confirmar com outros jornais. Ao mesmo tempo, isso me estimulou a procurar em outros arquivos, nos arquivos da Igreja Católica de São Paulo, em cartórios, por exemplo.
O que Mário falaria do Brasil hoje?
Ele diria que não precisamos mais de uma Semana de Arte Moderna. A cultura brasileira está muito bem, bastante diversificada, tem uma energia muito grande. É uma cultura que tem várias características. É, ao mesmo tempo, nacional e cosmopolita e inclui a cultura popular e a erudita. Agora, a política e a economia do país continuam defasadas. E é curioso, porque em 1922, politicamente, o país era bastante atrasado. Os artistas lançaram esse movimento antenado com o que estava acontecendo nos países mais avançados, ou seja, deram um grande passo, mas a política não avançou muito. Hoje, a situação é muito semelhante: a cultura está mais à frente do que a política e a situação social do país de modo geral. Mas ele sentiria muito orgulho porque o legado dele está muito presente.
O que podemos aprender com Mário de Andrade?
Três principais características que considero do Mário como intelectual: o amor incondicional ao Brasil; uma independência de pensamento, ele sempre foi independente, nunca se alinhou com grupos; e abordou uma grande diversidade de temas na sua obra. Então, essas três características são fundamentais para quem quer conhecer o Brasil e ajudar o país a avançar em diferentes aspectos. O amor incondicional dele não era um amor isento de críticas. Ele fazia críticas ao brasileiro, dizia que nós não temos espírito prático, as falhas ele criticava, mas ele não abria mão de dar prioridade às coisas do seu país. A independência de pensamento também era algo muito difícil para se ter na época. Era uma época polarizada, o próprio movimento Modernista se dividiu e o Mário se manteve distante desse grupos, nunca se alinhou, manteve um espírito democrático e coerente com as suas ideias. Era absolutamente contra o radicalismo, principalmente o fascismo. Então, essa independência é muito útil em qualquer época, principalmente, hoje. E essa diversificação de temas era uma grande curiosidade intelectual que ele tinha. Eu não conheço, mesmo no exterior, nenhum intelectual que tenha abordado tantos assuntos em sua obra. É um caso raro de intelectual brasileiro, pode-se dizer até um inventor da cultura brasileira, essa cultura diversificada.
O título do livro é Em busca da alma brasileira, Mário de Andrade encontrou a alma brasileira?
Acho que o Brasil não encontrou a sua alma até hoje. Na época, se criticava muito o Brasil porque dava muita atenção a Paris. O pessoal valorizava mais as coisas da França do que do Brasil. Hoje, na verdade, acho que se valoriza muito mais as coisas dos Estados Unidos do que na época se valorizava as coisas da França. Na época, as informações eram mais limitadas, chegavam basicamente pelos jornais impressos. Hoje, como se tem acesso a muita coisa ao mesmo tempo, a gente vê nomes de prédios em inglês, palavras em inglês incorporadas o tempo inteiro. São exemplos de que nós ainda estamos com a alma dividida. Não sabemos se valorizamos a nossa ou ficamos submetidos à cultura estrangeira. É um país também que vive dividido entre a civilização e a barbárie. Temos acesso a muita coisa, em termos de informação, houve uma evolução em vários aspectos, mas, ao mesmo tempo, existe um estado ainda de barbárie em termos de segurança pública, de desenvolvimento social, de saneamento básico. Acho que o Mário de Andrade diria para que continuássemos buscando a alma brasileira para ver se a gente se encontra, se o país encontra consigo mesmo.
Em busca da alma brasileira ; Biografia de Mário de Andrade
Livro de Jason Tércio. Editora Estação Brasil, 544 páginas. Preço sugerido: R$ 67,90