Diversão e Arte

Falha grave de apuração

Minissérie da Netflix Inacreditável retrata as fragilidades recorrentes em investigações de casos de abusos sexuais

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 12/09/2019 04:07
Com inspiração em livro, a produção acompanha a investigação de uma série de estupros ocorridos entre 2008 e 2011 nos EUA
Inacreditável, de fato, é a melhor palavra para definir a história da norte-americana Marie, que dá origem a minissérie que estreia amanhã no catálogo da Netflix. A produção, que tem oito episódios, conta o que aconteceu com a jovem em 2008 e como um erro de interpretação no caso da estadunidense fez com que um estuprador em série continuasse a cometer crimes sexuais nos Estados Unidos. A minissérie tem base no livro Falsa acusação: Uma história verdadeira, dos jornalistas Christian Miller e Ken Armstrong, dupla que investigou o fato para uma série de reportagens veiculadas em 2015 nos sites Pro Publica e Marshall Project, que depois deu origem ao livro, publicado pela Editora Leya no Brasil.

Em 2008, quando tinha acabado de completar 18 anos, Marie, que na minissérie é vivida pela atriz Kaitlyn Dever e ganha o sobrenome de Adler (já que na reportagem e no livro ela é identificada apenas pelo nome do meio ; o que ela autorizou ;, como forma de preservação da identidade, comum em casos de abuso), foi estuprada dentro de casa em Lynwood, no estado de Washington, nos Estados Unidos. Ela foi amarrada com cadarços do próprio tênis, abusada sexualmente, fotografada nua em várias posições, obrigada a tomar um banho de 20 minutos pelo estuprador ; em uma tentativa de retirar qualquer resquício de material humano que pudesse ser identificado pela polícia ; e abandonada. Logo após conseguir se soltar, ela ligou para a emergência policial.

Não bastasse a violência sexual sofrida e o trauma causado pelo fato, a partir do momento em que denunciou o crime, Marie viveu um verdadeiro calvário. Teve que depor cinco vezes para as autoridades, entre policiais, detetives e enfermeiros. Sem analisar os dados coletados do corpo de Marie após o estupro, a polícia de Lynwood resolveu acatar uma dúvida da mãe adotiva da jovem e pressionar a garota sobre estar inventando o fato ;para chamar atenção;. Cansada de tudo que estava acontecendo, Marie decidiu dizer que não passava de uma mentira. Sem avançar na investigação, o caso foi arquivado, e a vítima chegou a ser processada pelo estado por calúnia. Só anos depois, por conta de uma investigação conjunta entre municípios americanos, a polícia descobriu que Marie havia sido uma das jovens vítimas de um estuprador em série, Marc Patrick O;Leary, um militar veterano de guerra que cometeu crimes sexuais entre 2008 e 2011 nos arredores de Denver e Seattle, nos Estados Unidos.

Como forma de mostrar as fragilidades recorrentes em investigações de casos de abusos sexuais e dar voz especificamente à história de Marie, os jornalistas Christian Miller e Ken Armstrong passaram a investigar a história. Primeiramente cada um sozinho, até que a dupla uniu forças para escrever a matéria em conjunto, mesmo que para veículos diferentes. A reportagem, além de colocar luz sobre o caso, garantiu aos repórteres o Prêmio Pulitzer e a publicação de Falsa acusação: Uma história verdadeira, obra de 336 páginas, com relatos de detetives, policiais, vítimas e até do próprio estuprador, que inspirou a nova minissérie da Netflix.

Produto audiovisual

Inacreditável é mais uma produção do serviço original em que uma história real e criminal é ficionada. Só neste ano, a plataforma fez sucesso com as adaptações de Olhos que condenam, de Ava DuVernay, sobre os cinco jovens acusados de um estupro no Central Park, e Mindhunter ; que teve a segunda temporada lançada no mês passado ;, de Joe Penhall, que gira em torno da resolução de crimes hediondos nos EUA.

A nova minissérie do streaming tem produção de Susannah Grant, que já havia brilhado em Confirmation, filme da HBO protagonizado por Kerry Washington, que interpreta Anita Hill, uma professora de direito que denuncia caso de assédio sexual do juiz Clarence Thomas. Outra produção baseada num fato real e também de abuso. Inacreditável ainda tem direção de Lisa Cholodenko, que ficou conhecida pelo trabalho em The L Word. O protagonismo é dividido entre Kaitlyn Dever, que faz Marie, e as atrizes Merritt Wever e Tony Collette, que dão vida as detetives Karen Duvall e Grace Rasmussen, juntas elas descobrem a teia de crimes cometidos por O;Leary.

Em oito episódios, Inacreditável constrói sua narrativa a partir do caso de Marie, que é apresentado logo no piloto. A partir dos demais capítulos, o espectador é levado a conhecer cada uma das detetives, as novas vítimas do maníaco sexual até o destrinchamento da investigação, que acontece após a identificação entre a similaridade dos casos, tanto no modus operanti como na escolha das vítimas: ;mulheres sozinhas;, como identifica Grace Rasmussen em um dos episódios.



Crítica / Inacreditável ****

Uma história impactante

A nova produção da Netflix estreia sob forte expectativa. Isso porque o tema chama bastante atenção, ainda mais no mundo atual, em que casos de estupro são cada vez mais comuns ; no Brasil, por exemplo, segundo o 13; Anuário de Segurança Pública publicado na última terça-feira, no ano passado, o número de casos de violência sexual correspondeu a mais de 180 estupros por dia. Não bastasse o assunto em si, a minissérie traz uma história chocante e alarmante, que tem dois pontos fortes: um caso de estupro tratado como denúncia falsa, e um estuprador em série.

Um dos grandes méritos da produção vem do roteiro, que é baseado no livro Falsa acusação: Uma história verdadeira. A obra dos jornalistas norte-americanos é muito bem construída e isso passa para a telinha. A minissérie, em sua maioria, é bastante fiel ao conteúdo das páginas literárias, ganhando apenas em alguns pontos aspectos mais ficcionais e narrativos para que o espectador possa se aproximar das personagens. Na minissérie, a vida pessoal de Marie ganha mais tempo de tela, assim como das detetives Karen e Grace.

Assim como fez Olhos que condenam, que levava o público a vivenciar o que os jovens passaram durante os depoimentos policiais, Inacreditável coloca o espectador para passar os piores momentos da vida Marie juntamente com ela. O primeiro episódio é incômodo, e isso é proposital, mostrando a protagonista repetindo várias vezes o depoimento sobre o abuso. A ideia é passar algo próximo do que a personagem viveu ao ser abordada de uma forma tão leviana após ter sido estuprada.

Ao mesmo tempo, a minissérie faz questão de mudar o tom no segundo episódio. Propositalmente de novo. Aqui o objetivo é mostrar a diferença de atitude da investigadora Karen com Amber (Danielle Macdonald), outra jovem vítima de estupro, que é tratada completamente diferente. A detetive dá todo o suporte para a menina, que tem um papel importantíssimo para a investigação que leva até o maníaco sexual. No terceiro episódio é a vez do público conhecer mais sobre Grace, novas vítimas e o caminhar da investigação, agora, em conjunto.

Essa mudança de tom que Inacreditável ganha, totalmente empática e empoderada, é um mérito que se deve ao fato de que produção conta com a direção de duas mulheres que têm experiência com narrativas femininas: Susannah Grant, diretora do ótimo Confirmation da HBO, e Lisa Cholodenko, nome por trás da série The L Word, sobre o mundo homossexual feminino.

Inacreditável deve figurar entre as produções de mais destaque da Netflix neste ano. Resultado da união de um tema forte, uma história inacreditável ; como bem indica o título da minissérie ; e incrivelmente bem conduzida narrativamente deixando o espectador na expectativa para o próximo episódio, além de boas atuações do trio de protagonistas. (AI)






Séries baseadas em casos reais



American crime story
; Antologia de Ryan Murphy, a produção já teve duas temporadas. A primeira teve como foco o julgamento do ex-atleta O.J. Simpson (Cuba Gooding Jr.) acusado de matar a ex-mulher e um homem em 1994. A segunda é sobre o assassino de Gianni Versace (Édgar Ramirez), o criminoso Andrew Cunanan (Darren Criss).


Manhunt: Unabomber:
; De Andrew Sodroski, a história gira em torno de Jim Fitzgerald (Sam Worthington), um agente da polícia especializados em criar o perfil de criminosos em busca de entender melhor a personalidade, e em consequência, as ações deles. Focada na década de 1990, a produção acompanha a saga da polícia em busca do assassino Unabomber (Paul Bettany).



Mindhunter
; Inspirada no livro Mindhunter ; O primeiro caçador de serial killers americano, de John Douglas e Mark Olshaker, a série chegou à Netflix no ano passado e acompanha a história dos agentes do FBI Holden Ford (Jonathan Groff) e Bill Tench (Holt McCallany) que buscam criar o perfil de assassinos em série entrevistando os criminosos.


Olhos que condenam
; Lançada em 31 de maio no catálogo da Netflix, a minissérie retrata o caso de cinco jovens que foram injustamente acusados de um estupro no Central Park e só anos depois acabaram sendo inocentados. Com direção de Ava DuVernay, a produção foi lembrada em 16 categorias do Emmy, entre elas, melhor minissérie.

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