Diversão e Arte

Peça teatral sofre com ameaças e mensagens de ódio

Casos recentes despertam a preocupação com a intolerância e a censura de obras com temática LGBT

ROBERTA PINHEIRO
Roberta Pinheiro
postado em 25/09/2019 07:00
Com direção e texto de André Garcia, a peça 'Manhã' percorre o Brasil há quase sete anos


;Eles insistem, mas vai ter peça;, assim o diretor do Grupo Domo de Teatro e Artes Integradas, André Garcia, tem se posicionado quase que diariamente nas redes sociais sobre o espetáculo Manhã. A peça estreia uma temporada em Brasília este fim de semana na Funarte e desde que a companhia anunciou o retorno para a capital, tem sofrido com ameaças e mensagens de ódio.

Com direção e texto de Garcia, a peça começou a percorrer o Brasil há quase sete anos. O enredo foi construído a partir da relação entre dois homens, que se amam e procuram, em um momento de crise, compreender-se para construir um vínculo duradouro. Para o diretor, a relação é apenas um pano de fundo da trama. ;Percebemos, na época da montagem, que estávamos carentes de material em que as pessoas pudessem se ver representadas. É um drama de amor, é sobre relações de amor e sobre dificuldades que qualquer casal enfrenta. Universalizamos os temas justamente para acalmar os ânimos e mostrar que todo mundo está vivendo os mesmos dramas. É um espetáculo realista, mas positivo;, explica.

Manhã foi assistido por mais de 4 mil pessoas e coleciona indicações a prêmios bem como premiações, como o Prêmio Funarte Mirian Muniz em 2012. O espetáculo passou por capitais como Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belém e Florianópolis. O diretor recorda que, de vez em quando, acontecia de um espectador não gostar do tema. ;Mas de forma discreta;, pontua Garcia.

Poucas vezes ele precisou apagar da página da companhia nas redes sociais comentários agressivos. ;Voltando para a nossa casa, Brasília, e, para a nossa surpresa, começou uma avalanche de discursos de ódio. De hora em hora, tenho que entrar na página para apagar;, conta o diretor.

Além de comentários como ;isso é cultura, ver boiola se esfregando um no outro, vemos todos os dias na rua;, ;vai caçar o que fazer;, ;que coisa ridícula;, ;se depender de mim, vai passar fome;, o grupo recebeu ameaças em mensagens privadas. ;Uma pessoa que se fez passar por espectador e quis saber onde estávamos ensaiando, até que desconfiei e ela reagiu;, relembra Garcia.
Outro usuário também compartilhou um vídeo da companhia acompanhado por ofensas e difamação. Diante da situação, o grupo registrou dois boletins de ocorrência. ;Nos surpreende. Por um lado, a gente sente na pele uma situação de homofobia, mas, por outro lado, pela depredação da cultura e da ciência que vivenciamos, não é surpresa;, afirma Garcia. Apesar de trabalhar com uma publicidade voltada para o público local e LGBT, as postagens partem de usuários de Brasília e de outras cidades.

O episódio ocorrido com o Grupo Domo é mais um dentro de um capítulo que parece recorrente. Na semana passada, a companhia franco-brasileira Dos à Deux apresentou na Caixa Cultural Brasília a peça Aux Pieds de la Lettre, parte do projeto Dos à Deux em repertório, selecionado pela instituição no programa de ocupação dos espaços 2019/2020. De acordo com informações do grupo, até 3 de setembro, a previsão era de que o Teatro da Caixa recebesse dois espetáculos entre os sete que compunham o repertório da Cia: Aux Pieds de la Lettre, sobre a loucura, e Gritos, sobre figuras oprimidas e marginalizadas.
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Até o início do mês, a companhia enviou todo o material técnico dos espetáculos e, inclusive, contratou uma assessoria de imprensa para divulgação das apresentações. ;Em 3 de setembro, a Caixa Cultural solicitou a sinopse do espetáculo Gritos, que foi enviada no mesmo dia. Posteriormente, foi solicitado um novo detalhamento do mesmo espetáculo, ainda mais completo. Ressalte-se que não foi solicitado qualquer tipo de informação adicional a respeito do espetáculo Aux Pieds de la Lettre. No dia 5, a instituição solicitou os links dos vídeos completos de ambos os espetáculos, também enviados no mesmo dia;, informa a produção da Dos à Deux.

Após uma reunião entre os envolvidos, a companhia entendeu que a forma de realizar o projeto seria excluir a peça Gritos do programa e apresentar somente Aux Pieds de la Lettre, acompanhada de ações formativas.

Em conversa com o Correio, um dos atores-bailarinos da Dos à Deux, Artur Luanda Ribeiro, comentou o ocorrido e ressaltou a importância de seguir em cena. ;Hoje, o mais importante é a gente estar em cena, seja ele qual for o espetáculo. A gente está perdendo a empatia com o público. Perdemos totalmente o olhar generoso, e a gente não pode deixar. Somos somente uma esponja, e a gente transforma essa esponja em arte. É uma visão do mundo, não é única visão, por isso somos muitos e ainda bem que somos muitos, porque cada um tem uma visão diferente e cada um tem uma coisa a dizer e cada um tem que ter essa possibilidade e esse poder de dizer;, disse.
Procurada, a Caixa Cultural afirmou que faz parte do protocolo de seleção do banco solicitar informações sobre todos os eventos patrocinados. Também reforçou o posicionamento em apoio à cultura ;em todas as suas temáticas;. A instituição esclareceu ainda que ;somente no edital de Ocupação 2019/2020, a Caixa selecionou mais de 150 projetos para apresentações nos sete espaços culturais da Caixa pelo país, com investindo de mais de R$ 17 milhões;.

Debate


Em função desses e de similares acontecimentos recentes, a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados realizou o seminário Artigo 5;: Censura nunca mais!. ;Detectamos vários exemplos de que o governo está instituindo a censura em diferentes áreas de políticas públicas, e isso ainda não estava sendo discutido de forma sistemática. Reunimos especialistas, artistas e agentes públicos para produzir conhecimento sobre essa nova situação, porque a preocupação era ter um repertório amplo sobre como as medidas de violação à liberdade de expressão têm sido formalizadas. É uma questão de defesa do Estado Democrático de Direito. Já não se trata mais de oposição ao governo;, comenta a deputada Áurea Carolina, uma das autoras da iniciativa.

Após a discussão, a deputada ressalta a relevância de que os fatos sejam denunciados, divulgados para a sociedade e as instituições provocadas. Além disso, foi sugerida a instalação de um grupo de trabalho ou observatório contra a censura na própria Câmara dos Deputados.

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