Diversão e Arte

Dilili: heroína de todos os tempos

O diretor francês conta como a repressão às mulheres ao longo de décadas inspirou seu mais recente filme, com força e delicadeza

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 26/09/2019 04:18
O diretor francês  conta como a repressão às mulheres ao longo de décadas inspirou seu mais  recente filme, com força e delicadeza




Dilili é uma menininha da Nova Caledônia na Paris da Belle Époque. É uma atriz. Culta, articulada, curiosa e cheia de vontade de entender os franceses. Parte de seu dia é ocupado por um ofício revelado logo no início do longa Dilili em Paris, a animação mais recente de Michel Ocelot, no qual a menina representa um personagem que, à primeira vista, choca e mantém o espectador em suspense. Dilili é surpreendente. Um dia, ela conhece Kanak, parisiense da gema com quem trava amizade comovente e necessária para levá-la ao patamar desejado por seu criador: o de uma menina empoderada e dona de si em uma época em que a opressão e a repressão às mulheres fazia parte de um cotidiano considerado normal.

O novo longa do diretor francês, de uma delicadeza e de uma força notáveis, está na Mostra Ocelot, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) até 6 de outubro e que reúne sete longas e cinco curtas produzidos nos últimos 30 anos. Autor da trilogia Kirikou, que, no final dos anos 1990, ajudou a mudar o rumo da animação na França, Ocelot escolheu a Paris do início do século 20 como cenário para a história de Dilili, um período no qual a cidade e a sociedade passavam por transformações que iam de novas linguagens artísticas a descobertas fundamentais para o avanço da ciência.


Em seu périplo, Dilili precisa descobrir quem são os malfeitores responsáveis pelo sequestro em série de menininhas das mais variadas origens. Acompanhada por Kanak, ela embarca em uma aventura cheia de história: de Picasso a Monet, de Marie Curie à feminista Louise Michel, a saga da garota não tem nada de entediante e atravessa cenários deslumbrantes da Paris do início do século. Dilili encontra Toulouse Lautrec no Moulin Rouge, passeia pelas Tulherias, atravessa a rue de Rivoli, sobe a Montmartre, visita Monet e faz um tour pelos esgotos encantados da cidade.

Como num teatro de sombras, porque a animação de Ocelot, 75 anos, pode até beber na tecnologia, mas não se rende ao 3D, Dilili em Paris foi inspirado nos próprios desenhos do diretor, mas também em seu fascínio pela cidade. ;Já era tempo de celebrar o país no qual vivo. A escolha da Belle Époque foi, primeiro, superficial: belos cenários e belos figurinos;, diz, em entrevista ao Correio. O diretor conta que a primeira inspiração para o filme veio dos cenários e figurinos, mas tudo fez mais sentido quando ele pensou em personagens como Sarah Bernhardt, que ajudou a conquistar o respeito pelo lugar de mulher no teatro; e Louise Michel, ativista e feminista que deu a vida pela conquista de direitos sociais. ;Eu pensei primeiro nos cenários e nos figurinos, então fui me informar mais sobre esse período. E percebi então que era extraordinariamente importante;, conta Ocelot. Na entrevista, ele fala sobre a escolha técnica para a estética do filme, o lugar das mulheres na história do homem e a importância do início do século.



Mostra Michel Ocelot
Até 6 de outubro, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Hoje, às 19h, Príncipes e princesas (1999, digital, 70;, livre, dublado). Amanhã, às 19h, Dilili em Paris (2018, digital, 90;, livre, legendado)




Depois de falar da África com Kirikou, do Oriente com Príncipes e princesas e das Antilhas e do Tibet com Contos da noite, por que um filme para falar de mulheres e meninas?
O mal que os homens fazem às mulheres e às meninas era o primeiro tema do filme. É um horror universal, com picos de horrores em diversas regiões. Uma comparação simples para entender: há mais mortes entre as mulheres e meninas agredidas do que mortes nas guerras. A riqueza que descobri na Belle Époque tocava nesse ponto, a civilização ocidental era um belo antídoto ao mal que é feito às mulheres. Os homens trabalhavam e inventavam, faziam avançar a literatura, a escultura, a pintura, a música, as ciências, as técnicas, a aeronáutica (obrigada Santos-Dumont) em vez de pisar sobre os outros. E foi nessa época que as mulheres se afirmaram: a primeira estudante na universidade, a primeira professora na universidade, a primeira médica, a primeira advogada, a primeira motorista de táxi e assim vai. Eu tive muito prazer em estudar e celebrar personagens inestimáveis como Colette, grande escritora, Louise Michel, personagem política que ninguém nunca conseguiu dobrar, Sarah Bernhardt, inventora do star-system mundial, Marie Curie, uma das maiores cientistas do mundo.


Os direitos humanos e os direitos das mulheres já estiveram presentes em seus filmes, mas de maneira muito sutil. Agora, eles estão claramente no discurso de Dilili, no sequestro das meninas e, sobretudo, na maneira como elas estão vestidas, com capotes escuros que nos lembram as vestimentas femininas de uma parte do mundo islâmico. Foi uma decisão arbitrária falar disso?
Quando vejo passar um ser humano enfiado nesses tecidos pretos, para a vida toda, fico revoltado. É uma maldade que se esconde sob uma falsa devoção. O que nos faz hesitar em denunciar, para não parecer que estamos contra a religião. É covardia. Mas os excessos que vemos hoje, sob um disfarce muçulmano, são apenas uma parte do iceberg. Todas as sociedades e regiões do mundo são culpadas.


No século 21, ainda falamos de direitos das mulheres e corremos o risco, em muitos países, de um retrocesso, tendo em vista uma volta ao conservadorismo que questiona direitos reprodutivos femininos. É uma urgência falar disso?
As pessoas dizem, com frequência, ;antes era melhor;. Eu nunca digo isso, porque é uma frase que repetimos há milênios e que não é justa. A não ser quando se trata de abusos cometidos contra as mulheres. Depois da Belle Époque, o século 20 viu enormes progressos na situação das mulheres em um grande número de países. O século 21 andou para trás com a subida dos integrismos religiosos e dos governos de tendência fascista.


Pode falar um pouco sobre a tecnologia utilizada no filme? Em que o senhor se baseou para criar o desenho?
Eu falo de coisas reais. De um lado, do abuso das mulheres. De outro, dos lados bons da humanidade. Os parisienses que deram certo (aqueles que vieram de todos os países) que mostro são personagens históricos, os cenários são reais, tirados de fotos que fiz nos últimos anos para esse filme. Fotos, e não desenhos. Mas, para os personagens, guardei a arte do desenho animado porque me sinto mais à vontade e porque continuo contando contos de fadas que são mais agradáveis de escutar do que uma palestra histórica


Sobre os desenhos, que são muito refinados, mas também muito simples: por que eles parecem mais interessantes num universo em que a tecnologia permite mecanismos cada vez mais realistas?
Não me sinto à vontade com o 3D extremamente realista. Se queremos realismo, é preciso olhar de verdade, com a vista real. E a reprodução artificial da vista real me entendia, não me faz sonhar. Como criador e como espectador, eu prefiro a leveza da arte gráfica. Há grandes progressos tecnológicos, cada vez mais aperfeiçoados e complicados. Essa complicação tem seus contratempos, é, às vezes, muito cara e necessita de muitos especialistas.


De Kirikou a Dilili, o que mudou na maneira como o senhor enxerga o mundo?
Nada mudou na minha cabeça, nada de novo sob o sol. Mas é verdade que, para o profissional da animação, as coisas mudaram e melhoraram. O principal aspecto é que a animação entrou na moda, não é mais a última das profissões. No caso da França, antes de Kirikou, fazíamos cada vez menos longas de animação, dos quais ouvíamos pouquíssimo falar. Depois do sucesso de Kirikou, se faz, na França e por ano, muito mais animação em longa-metragem. Portanto, tudo vai muito bem no meu pequeno universo...


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