Diversão e Arte

Dois romances de autores brasileiros têm o suicídio como um dos temas

'Dama de paus', de Eliana Cardoso, e 'Crocodilo', de Javier Contreras, abordam a questão de maneira a informar e tentar compreender o delicado assunto

Nahima Maciel
postado em 07/10/2019 08:38
Eliana Cardoso ganhou o Prêmio Kindle de Literatura com a obra 'Dama de paus'

As duas situações que geraram Dama de paus, de Eliana Cardoso, e Crocodilo, de Javier A. Contreras, estavam latentes nas cabeças dos autores há alguns anos. No caso de Eliana, desde a infância. Para Contreras, é mais recente. Os dois romances tratam de suicídio, embora não se dediquem a destrinchar o tema e, sim, a tentar entender como vivem os familiares e amigos que ficam.

Vencedor do Prêmio Kindle de Literatura, Dama de paus tem como centro o feminicídio, a violência doméstica, o machismo estrutural e a cultura extremamente conservadora do interior do Brasil. É nesse cenário que se dá o suicídio de uma das personagens. Em uma família de fazendeiros ricos do interior de Minas Gerais, um casamento por conveniência e anos de opressão feminina resultam em um assassinato. Quando os homens tomam as rédeas da situação para tentar resolvê-la a seu modo, outra tragédia acontece e mergulha o leitor em uma narrativa pautada pelo mistério e pelos silêncios.

Eliana conta que uma história ouvida na infância a levou a Dama de paus. ;Fui adolescente em Minas e acompanhava o que estava acontecendo por lá. Na década de 1970, houve uma série de assassinatos nos quais mulheres foram mortas ou pelo marido, ou pelo amante, e os assassinos foram absolvidos. Em geral, tinham sempre o mesmo advogado e o argumento era sempre ;em defesa da honra;;, conta a autora. ;Eram coisas que ocorriam não tem muito tempo e que, hoje, são inimagináveis. O feminicídio ocorre todos os dias em todos os lugares do país, mas jamais ocorreria a alguém defender um homem com o argumento de que foi em defesa da honra. Mas todos os dias um homem acha que está matando ou agredindo uma mulher para defender a própria honra.;

De Minas Gerais, onde nasceu, Eliana tem lembranças de um patriarcalismo pesado e de uma sociedade na qual o silêncio e os segredos de família eram muito valorizados. ;Essa foi a lembrança que carreguei comigo: o poder destrutivo desse silêncio que faz você reprimir coisas que te atormentam. Isso ficou como uma marca forte da sociedade daquele tempo;, conta a autora, que até hoje se sente marcada por esse molde social. ;Por conta dessa chamada ;discrição; do mineiro, noto que tenho muita dificuldade de perguntar coisas diretas às pessoas. Espero que as pessoas me contem, mas se elas não me contarem, não tenho a coragem de perguntar;, lamenta.

O suicídio de uma das personagens também veio de uma história ouvida atrás da porta, quando era menina. A autora decidiu estudar o tema antes de incluí-lo no livro e leu dos teóricos mais importantes, como Émile Durkheim, aos clássicos, caso de Anna Karenina, de Liev Tolstói. ;O suicídio é um tema recorrente na literatura, é muito presente. O tema do silêncio e da destruição pelo segredo também;, garante. É também, ela admite, um tema tabu que Dama de paus não tem a intenção de explicar. ;Para nós, que não temos religião, que não acreditamos noutra vida, que pensamos na vida como sendo o único bem que temos e que a morte é o fim, esse desespero que leva alguém a olhar para a vida como sendo insuportável é um mistério;, observa Eliana.

Em Crocodilo, o protagonista e narrador é o pai de uma vítima de suicídio. Jornalista investigativo, ele embarca em uma busca obsessiva para tentar compreender o ato do filho. Não encontra respostas, nem são elas o foco de Javier Contreras. Ao autor do romance, interessa jogar luz sobre outra questão. ;Eu realmente queria pegar o ponto de vista de quem ficou para tentar explorar, além do sofrimento, essa busca de compreensão de algo para que, realmente, pode não haver respostas;, explica. ;Quis me ater com profundidade nessa questão do sentimento, tanto que usei como personagem, justamente, um jornalista, para trabalhar o ceticismo e o senso de investigação.;

O contraponto entre o pai e a mãe diante da perda é um dos pontos interessantes de Crocodilo. Enquanto ele se entrega à indignação diante da tragédia e trata o fato como alvo de uma investigação jornalística, ela tenta compreender sem buscar respostas, sempre em silêncio e numa busca mais interior e espiritual. Disso surgem relações familiares sobre as quais nunca haviam refletido e aí está o que Contreras chama de ;terceira via do livro;. ;Isso acaba se transformando numa descoberta de relações familiares que, muitas vezes, a gente vive e não analisa. A gente vive tão cotidianamente relações tão normais que acaba não refletindo a fundo por que perdeu a festa do filho, ou por quê ele estava daquele jeito;, repara.

O suicídio se tornou tema por causa de dois casos ocorridos com pessoas distantes. Contreras estava trabalhando em outro livro quando se deu conta de que a urgência narrativa de Crocodilo batia à sua porta. ;Tinha algo me incomodando e eu não sabia o que era, estava escrevendo outro livro com temática política atual, só que não conseguia evoluir. Deixei de lado, abri nova pasta do Word e me veio a primeira frase. Entendi que isso estava dentro de mim sem eu saber;, conta.
Javier Contreras:
; Duas perguntas para Javier Contreras

Falar sobre o suicídio sempre foi um tabu, mas nos últimos anos a consciência de que é uma epidemia e que é preciso falar sobre isso tem sido mais frequente. Como você encara esse silêncio sobre o tema?
É necessário falar. Ainda é um tabu. Mas vejo também que tem alguns movimentos, como o Setembro Amarelo, e tem se falado mais mesmo. E é necessário como forma de prevenção, porque hoje, nessa nova era de relacionamentos cada vez menos físicos e mais virtuais, as pessoas acabam se distanciando e ficam muito sós. Sem dúvida, é um sintoma dessa nova sociedade.

Também é um tema recorrente na literatura;.
Ultimamente, não tenho lido esses romances mais jovens, mas sei que tem séries, como Os 13 porquês, tem alguns livros adolescentes jovens que retratam essa questão sob o ponto de vista das vítimas de suicídio, mas eu quis fugir disso, quis pegar o outro lado, que é a visão dos que ficam, que é tentar entender o porquê daquilo.

Durante muito tempo se estabeleceu que falar sobre o suicídio e noticiá-lo por estimular novos casos. O que você, que é escritor e jornalista, acha disso?
Acho que tem que falar. Passamos da fase de omissão. A tecnologia impulsionou a discussão no mundo inteiro, não é mais um tema que fica no gueto, é uma coisa a nível mundial, é uma epidemia. Mas entendo a complexidade do tema. Tenho duas filhas e são temas que quero debater com elas.
Dama de paus
De Eliana Cardoso. Editora Nova Fronteira, 128 páginas. R$ 39,90.
Crocodilo
De Javier Contreras. Editora Companhia das Letras, 184 páginas. R$ 64,90.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação