Diversão e Arte

'Tenho fé no Brasil', diz Gilberto Gil, em entrevista

Gil desembarca em Brasília para o show 'Ok,ok.ok'

Irlam Rocha Lima, José Carlos Vieira
postado em 10/10/2019 06:30

Gilberto Gil:

Desde que surgiu na cena musical brasileira, em 1967, ao participar do Festival da Record, com Domingo no parque, Gilberto Gil sempre propôs reflexão nas incontáveis canções registradas em sua extensa obra ; um rico legado para a cultura do país. A inquietação desse genial artista baiano está presente em diferentes momentos de sua trajetória: do movimento tropicalista a discos como Refazenda Refavela, Quanta e OK OK OK, o álbum mais recente.

Nesse novo trabalho Gil trata de questões existenciais como a inevitabilidade da morte e o espetáculo da vida, após superar sérios problemas de saúde. Como um dínamo, ele tem se envolvido em projetos diversos, que vai do show Trinca de ases, com Gal Costa e Nando Reis (que os levou, inclusive, à Europa), ao programa Amigo, sons e palavras, que apresenta às terças-feiras, às 21h30, no Canal Brasil, no qual tem recebido convidados de segmentos diversos ; do teatrólogo José Celso Martinez Correa ao comentarista esportivo Juca Kfouri.

Em outubro de 2018, o cantor botou novamente o pé na estrada com o show OK OK OK que, neste sábado, chega finalmente a Brasília, para apresentação no auditório master do Centro de Convenções Ulysses Guimarães. Gil está acompanhado pela banda formada pelos filhos Bem Gil (guitarra), José Gil (bateria), Nara Gil (backing vocal) e mais Bruno Di Lullo (bsixo), Danilo Andrade (teclados), Domenco Lancellotti (bateria e percussão), Diogo Gomes e Thuiagô Queiroz (sopros).

Músicas do CD homônimo como Na real, Ouço, Prece, Sereno, Sol de Maria e a que dá título ao show estão ao lado no repertório com canções consagradas de Gil, entre elas Extra, Lugar comum, Maracatu atômico, Pai e mãe e Se eu quiser falar com Deus. Na lista foram incluídas também Nossa gente (Avisa lá), clássico do Olodum; e Pro dia nascer feliz, de Cazuza e Frejat, primeiro hit do Barão Vermelho.


OK OK OK

Show de Gilberto Gil e banda sábado, às 21h, no auditório master do Centro de Convenções Ulysses Guimarães (Eixo Monumental). Ingressos: R$90 (poltrona superior), R$ 100 (poltrona especial), R$ 150 (poltrona vip), R$ 160 (poltrona gold) e R$ 250 (poltrona premium) ; valores referentes a meia entrada. Desconto de 60% sobre ingresso de inteira para assinante do Correio. Ponto de venda: G2 do Brasília Shopping. Não recomendado para menores de 14 anos.



Entrevista// Gilberto Gil


Depois de superar problemas de saúde, você entrou numa maratona que incluiu os shows Trinca de ases, (com Gal Costa e Nando Reis) e o OK OK OK (disco e show). Fazer música no estúdio e no palco é um elixir?

Música é minha ocupação básica. Sempre o melhor, mais prazeroso e mais energizante dos trabalhos. Depois de um período cuidando da saúde foi muito bom voltar ao estúdio e aos palcos.


OK OK OK, canção que dá título ao álbum, lançado em 2018, foi composta num momento em que você recebia apelos para se pronunciar sobre o que ocorria no Brasil naquele período. A situação, no seu entendimento, continua inalterada, ou se tornou ainda mais caótica?

Dar opinião sobre tanta coisa tem sido sempre uma demanda para gente como eu. A situação do país, sua sociedade, sua vida política, etceteras, são coisas dinâmicas, estão mudando todo o tempo. Nada é hoje, propriamente, como era há um ano. Muito se melhora e muito se piora sempre um tanto. As coisas no mundo não estão nada simples. A complexidade é imensa. Aqui ou em qualquer lugar. Estou voltando da Índia: 1,3 bilhão de pessoas. O país tem um vasto território como o nosso. Uma história de, pelo menos, 4.000 anos, oito vezes mais longa que a nossa. Uma vida tantas vezes mais difícil. E eles estão lá e vão indo da forma que podem. Aqui também vamos seguindo, apesar das imensas dificuldades que se acumulam.


O show homônimo que está na estrada desde o fim do ano passado tem lhe trazido que sentimento?

A alegria que aprendi a encontrar ao longo de uma longa vida, de compartilhar minha música com as pessoas.


Cantar Pro dia nascer feliz (Cazuza e Frejat) pode ser tomado como uma prece?

Claro. A força poética e a potência musical do Cazuza serão sempre uma fonte de reflexão, de meditação, de oração, pela transformação humana.


Ter Bem Gil, José Gil e Nara Gil em sua companhia no palco é algo que lhe traz acréscimo nos campos artístico e pessoal?

Os três são lindas pessoas e belos artistas. Estar com eles nos palcos, nas viagens, em tudo que significa andarmos juntos por aí, é um bálsamo. E os bálsamos são feitos para trazer alívio.


A censura de hoje é um pouco diferente da época pesada da ditadura, se faz com uma metralhadora de informações irrelevantes, fúteis e fake news, além da disseminação do ódio. Como reagir?

Em meio às formas novas de interditar o fluxo natural e pleno das ideias e das ações artísticas a que você se refere, temos ainda a repetição dos modos convencionais de censura em muitos fatos que estão aí com a interdição de livros, filmes, peças de teatro, discursos, posicionamentos e tantas outras coisas. Os discursos de ódio, as fake news e todas essas formas novas de obstar e confundir as narrativas são só as formas mais recentes e mais complexas do velho ato obscurantista.


Você se apresentou com o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, em setembro de 2003, naquela instituição. Foi uma festa da cultura brasileira em Nova York. O que mudou de lá para cá?

São outros os personagens de agora. A ONU perdeu o que lhe restava de poder de influência. As nações recuaram nos seus propósitos mais amplos de construção de um mundo mais igual, mais justo e socialmente mais moderno. Os mandatários e suas iniciativas diplomáticas estão restritas a um repertório convencional. Não cabem mais num plenário das Nações Unidas, momentos poéticos e inovadores como aquele com o secretário-geral tocando seu tambor ao lado de um artista baiano, num gesto tão representativo das suas origens africanas em comum.


Você ainda anda com fé em relação ao Brasil?

Sempre. Fé num pulsar da nação em direção a um destino radiante, ainda que distante.


Tivemos bossa nova, Tropicália, Clube da Esquina, Pessoal do Ceará... O que há de novo sobre a terra musical brasileira? Há espaço para novos movimentos?

Os meios atuais, robustecidos e ampliados pela internet, e toda a oferta de conhecimentos e instrumentos novos para a movimentação da música pelas estradas da vida social, já caracterizam um estado permanente de movimento. Acho difícil o surgimento de uma ou outra particularidade militante que se destaque do ;grande meio circulante; da atualidade musical diversa e plural. Temos música para todo os gostos, música para todo o desgosto, música para a velha música, música para a pós-música. As categorizações e catalogações ficam a cargo das curadorias formais dos produtores-promotores e da curadoria informal dos cronistas na imprensa.


Na sua poética, o mundo digital-tecnológico está presente em várias canções, como no delicioso álbum Quanta. Mas essa invasão massiva dos algoritmos não está transformando o planeta numa grande manada?

Sim, acho que está e é isso mesmo que a sociedade mundial vem permitindo ou propriamente desejando. É por isso que eu não creio nas tentativas de regressão da vida social e cultural a estágios pré-modernos. O homem moderno ; e já o pós-moderno ; acredita e confia na ciência, na tecnologia, na passagem de uma evolução biológica que nos trouxe até aqui para uma evolução compartilhada entre a biológica e a tecnológica que nos arremessa ao futuro.


É necessário reinventar a música brasileira ou ainda estamos vivendo um caldeirão antropofágico sem fim?

Quando muitos investiram no conceito antropofágico, tempos atrás, não havia ainda a concretização de uma realidade indiscriminadamente global como temos hoje, com sua extensão e intensidade levadas ao cabo e ao nível do planeta inteiro. Isso não os impediu de acreditar na capacidade de tudo fagocitar tudo, de tudo engolir tudo e tudo se amalgamar. Agora já estão dadas as condições para que isto se dê.


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