Diversão e Arte

Ela não foge à luta

Em autobiografia, Fernanda Montenegro narra a história do teatro brasileiro ao contar a própria trajetória

postado em 19/10/2019 04:07
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Uma das coisas mais prazerosas da leitura de Prólogo, ato, epílogo é a sensação de ouvir a voz de Fernanda Montenegro narrando uma história. Quem já assistiu às entrevistas com a atriz, observou suas atuações em novelas e filmes ou esteve diante dela em algum palco de teatro saberá identificar ali não só o timbre da voz, mas a postura, a escolha das palavras e o estilo de construção das frases. Não se trata de literatura, e, sim, de um misto de espontaneidade com relatos poderosos que atravessam a história do teatro brasileiro. Curiosamente, não foi Fernanda diretamente quem escreveu o livro, e sim a jornalista Marta Góes, a partir de uma série de 18 entrevistas compiladas durante 14 meses. No total, foram 45 horas de conversas. Na época, a atriz já estava imersa nas próprias memórias, preparando Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico, editado pelo Sesc.

Para as memórias, ela contou, em entrevistas, que a motivação foram os netos. Fernanda queria deixar um registro não só da própria trajetória, mas da família inteira. Por isso o início, dedicado aos antepassados que imigraram da Itália, é tão importante em Prólogo, ato, epílogo. Arlette Pinheiro da Silva, nome que ganhou da mãe por conta da atriz francesa Arlette Marchal, insiste na ideia de sobrevivência como origem de sua própria formação. Quando entraram no navio em direção a um destino desconhecido, seus avós e bisavós se tornaram, para sempre, sobreviventes. Assim como Fernanda Montenegro, nome que escolheu para subir ao palco do teatro brasileiro. ;A sobrevivência;, já disse, ;ficou cravada na minha formação;.


Prólogo

Dos antepassados, imigrantes que vieram da Itália ; a avó deixou a Itália aos 16 anos, em um navio acompanhada da família, da qual acabou temporariamente separada quando chegou ao Brasil ; às lembranças da infância no Rio de Janeiro, para onde a família se mudou depois de alguns anos no interior de Minas Gerais, o Prólogo é o início de tudo.

Para ser aceito pelos contratadores e embarcar no navio rumo ao Brasil, o avô da atriz se passou por camponês. Mas, na verdade, Pedro Nieddu era estucador na terra natal e, por saber trabalhar com gesso, conseguiu emprego na obra do Theatro Municipal, naquele início de século 20. É de sobrevivência, sobretudo, que Fernanda fala nessa primeira parte do livro, assim como sua descoberta das artes cênicas no palco da escola e do rádio, o ;mais poderoso meio de comunicação da época;. Na Rádio MEC, como locutora, a então Arlette engrenou no mundo das artes, ao mesmo tempo em que se preparava em um curso de secretariado, condição para acalmar os pais reticentes, mas compreensivos em relação à aspiração artística da filha. ;Na Rádio MEC encontrei um organismo cultural de primeira ordem;, conta atriz no início de Ato, a segunda parte do livo, dedicada à carreira que contabiliza 40 prêmios e 40 novelas e minisséries, 35 filmes e 58 peças.

Fernanda é a história do teatro brasileiro e essa condição se delineia claramente em todo o miolo do livro. Ao mesmo tem em que fala sobre sua própria construção como atriz, traz para a narrativa os momentos mais importantes da formação de uma geração de atores e atrizes que construíram a dramaturgia nacional. Nesse caminho, obviamente, há altos e baixos. Às vezes, mais baixos do que altos.


A mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília teve um impacto considerável na vida da atriz. A crise econômica na qual o país mergulhou nos anos 1950 foi traumática. ;Apesar da desmedida propaganda oficial, como o slogan fantasioso ;50 anos em 5;, a verdade é que a classe menos privilegiada, na época, sofreu um desmonte total diante de uma inflação esmagadora. Os salários foram congelados, Estagnados. Sei na pele, na minha e na de minha família, o que foi essa convulsão econômica centrada na ambição, à la Ramsés II, da parte de Juscelino Kubitschek de, em quatro anos, imaginar, projetar e erguer a nova capital de um país(...);, diz.

A profissão de ator é reverenciada a cada página, e Fernanda faz sempre questão de pontuar o quão sério é o ofício e o quanto o trabalho duro e disciplinado faz parte do cotidiano profissional. As dificuldades também entram nessa conta. Fernanda conta sobre as idas e vindas entre São Paulo e Rio de Janeiro, a falta de dinheiro que a levou, junto com o marido, Fernando Torres, a trocar um modesto apartamento por uma pensão e a crise que abateu a companhia Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), da qual fez parte à frente do que era considerado a vanguarda do teatro brasileiro.

Foi o Grande Teatro, uma proposta de Sérgio Brito em parceria com um grupo no qual entrava também Fernando Torres, que salvou a família financeiramente. As peças gravadas nos estúdios da TV Tupi, no Rio de Janeiro, inauguraram a era do teleteatro na televisão brasileira e milhares de pessoas que nunca haviam frequentado o teatro passaram a conhecer os rostos mais importantes da produção nacional. No TBC, a atriz fazia, em média, oito espetáculos por semana e, aos domingos, tomava o avião de volta a São Paulo para gravar o teleteatro, ensaiado durante as madrugadas.


Fernanda é corajosa ao falar de temas como a doença do marido, vítima de um AVC e de um alcoolismo causadores de danos que o acompanharam durante décadas, de sexualidade ; Torres, ela revela, foi o único homem de sua vida ; e da maneira como, até hoje, a profissão do ator é vista no Brasil com desdém. Há também passagens curiosas em que conta de sua não experiência com LSD e outras drogas. Durante os anos de desbunde, ela foi confrontada algumas vezes com a pressão para experimentar substâncias estimulantes, mas nunca quis.

A experiência nas novelas e no cinema também ocupam boa parte do relato. Central do Brasil, com o qual foi indicada ao Oscar de melhor atriz e ganhou, em 1998, o Urso de Ouro no Festival de Berlim, é um divisor de águas. Fernanda estava com 70 anos e já trazia uma bagagem de dezenas de peças de sucessos e filmes históricos para o cinema nacional, como Eles não usam black-tie e A falecida, ambos de Leon Hirszman. Em uma passagem, ela conta como se viu, em função do Oscar, rodeada pelos nomes mais emblemáticos da história do cinema. Há vários relatos de conversas com astros como Gregory Peck e Ian McKellen. Durante um diálogo com a atriz Jennifer Jones, viúva bilionária do produtor David Selznick (de E o vento levou;.), Fernanda se deparou com uma realidade comovente ao indagar por que Jennifer não atuava mais. ;Porque nunca, nunca mais me convidaram;, respondeu a atriz, na época com 80 anos.

Nunca foi o caso de Fernanda Montenegro. O trabalho mais recente na televisão, a Dulce Ramirez de A dona do pedaço, ainda está no ar e, apenas este ano, três filmes nos quais atua chegam às salas ; Piedade (Claudio Assis), A vida Invisível (de Karim A;nouz) e O juízo (de Andrucha Waddington). No teatro, ela está em cartaz com o monólogo Nelson Rodrigues por ele mesmo.

Epílogo

A lucidez, uma das marcas da voz de Fernanda Montenegro, encerra Prólogo, ato, epílogo. ;Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Inarredável. O que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto;, diz a atriz, que completou 90 anos na última quarta-feira.




Prólogo, ato, epílogo ; Memórias
De Fernanda Montenegro. Com Marta Góes. Companhia das Letras, 342 páginas. R$ 49,90

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