Diversão e Arte

Uma quase vida

postado em 27/10/2019 04:18
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No mais recente filme, A fera na selva, o ator e diretor Paulo Betti dá vazão à figura de um homem extraído da literatura de Henry James cuja existência está atada a um impasse: como se vestindo uma camisa de força interna, ele tem constante pânico do futuro, que o assombra. ;O recado de Henry James é simples: trata da questão recorrente a qualquer pessoa ; o viver agora. Valorizar o passado ou mesmo o futuro, em detrimento do presente é algo do ser humano. Há projeção da esperança, do porvir; às vezes até valorizamos demais o passado. João (o personagem) se recusa a viver o momento presente;, comenta o realizador. Com a obra do diretor português Manuel de Oliveira, Betti assume ter se embrenhado numa inspiração junto ao clássico de Mário Peixoto Limite (1931).

O clima de imobilidade que assola parte dos brasileiros traria um bom paralelo com o filme? ;Acho que estamos perdidos, num momento de escuridão absoluta. Mas, as pessoas continuam vivendo; apesar de tudo, seguem. Há luta e existe saída, que está na arte, na ética a na cultura. Com o filme, Eliane Giardini, Lauro Escorel e eu (codiretores do longa) estamos tentando uma guerrilha, num momento tóxico. Estamos na contramão;, comenta Betti. João (nome do protagonista, na adaptação de A fera na selva) leva obsessivamente à certeza de que algo extraordinário vai acontecer na vida. Como testemunha, ele conta apenas com Maria (Giardini), também professora na região de Sorocaba (SP) em que o longa foi filmado. Uma forte ligação fica estabelecida entre ambos.

;Algo extraordinário vai acontecer na nossa vida, por sinal: no mínimo, a morte;, demarca o cineasta. Os livros de Henry James, com trechos lúgubres, serviram ao cinema em ocasiões como a da obra de François Truffaut O quarto verde (1978). ;Naquele filme, há personagem que venera a mulher, mas quando ela está morta. Se agarra ao caixão, abraça e se diz perdido. Logo depois, está apaixonado por outra;, relembra. Ao transpor a trama para a telona, Betti, inevitavelmente, lembrou de um cunhado. ;Ele sempre esperou ganhar na loteira esportiva, e passou a vida, apostando. Não viveu. Além disso, gravava muito a própria voz, com a ideia de que, um dia, se tornaria um cantor famoso;, conta.

Em A fera na selva pesou a fidelidade a um dado enfatizado no texto de James, datado de 1903: ;O forte e avassalador sentimento interno de João, como um elemento atávico;. Para contornar os momentos absurdos e interferências das profusões de palavras, o diretor apostou numa ;aproximação emocional;, por meio de objetos pessoais espalhados no cenário, da escolha de locações, reativando a obra que encenou, ao lado de Giardini, há 30 anos. Ambos foram casados até 1997.

Lembranças

Nascido em Rafard (perto de Sorocaba e de Votorantim, em São Paulo), Betti, na obra com orçamento de R$ 2 milhões, colocou uma foto da antiga sogra, num porta-retratos que adorna um piano; contou com muitos dos irmãos para figuração, e ainda colocou em cena um enfermeiro, ex-colega dele (no Hospital Santo Antônio, em que trabalhou em 1968). Juliana Betti, filha do ator, aparece cantando trecho da opereta A canção brasileira, que o ator pretende dirigir.

;Estou num momento especial, e venho acompanhando todas as sessões do longa ; o filme parece um filho que quero mostrar pessoalmente a todos. Até o desmame (risos), quero ficar perto;, explica o artista que veio a Brasília, na quinta-feira passada. Mas, Betti reforça o fato de o mérito do filme decorrer de várias contribuições e visões: ele se concentrou, em especial, na escolha de locações, enquanto Giardini depositou atenção nas marcações de cena e Lauro Escorel, que também foi diretor de fotografia, para além das escolhas de luz, imprimiu a velocidade das filmagens, o tom emocional e a intensidade das atuações.



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