Severino Francisco
postado em 09/11/2019 11:43
[FOTO1]Do lápis, da aquarela, do guache, do nanquim ou do aerógrafo de Fernando Lopes escorreram flores, figuras surreais, retratos cubistas de personagens cotidianos, críticas ácidas, cenas expressionistas do teatro do poder, humor negro ou lirismo. A produção é multifacetada e inclui ilustrações para jornais, capas de livros, selos, bilhetes de loteria e desenhos anatômicos. Os 50 anos de produção de Fernando Lopes integram mostra retrospectiva na Caixa Cultural, em cartaz até 15 de dezembro.
Mas a parte mais ampla e importante é a que produziu como ilustrador para o Correio e para o Jornal de Brasília, em contagem regressiva dramática contra os ponteiros dos relógios. Desde que caiu em uma redação, Lopes se encontrou, pois transformou o trabalho em um campo permanente de experimentação.
Nos tempos em que morava no Chile, Lopes foi descoberto por Rolando Toro, o inventor da biodança. Lopes namorava a filha de Toro e ela mostrou um desenho ao pai. Logo, ele reconheceu o talento do brasileiro e armou a primeira exposição: ;Sua arte configura uma mistura de assombro e curiosidade; escreveu Rolando Toro, ao apresentar a primeira mostra individual do artista.
Lopes nunca é descritivo. Mesmo quando lida com temas áridos, ele tenta ir além em busca de uma imagem reveladora, teatral e simbólica. A curadoria da mostra é de Oto Reifschneider, que organizou um painel que vai do primeiro caderno de desenho até a série recente de retratos elaborados pelo artista. E, nesta entrevista, Lopes fala sobre a descoberta do desenho, o trabalho na cozinha dos jornais, a experimentação cotidiana e a relevância da ilustração para o jornalismo.
Como foi a sua iniciação ao desenho?
Na exposição tem o primeiro caderninho em que desenhei, quando morava no Chile e tinha 9 anos. Morei por lá dos 5 aos 17 anos. Mas sempre vinha ao Brasil, desenhava a Cordilheira dos Andes, a praça, a igreja barroca, o ritual de macumba e a praia. Quando tinha 14, no Chile, namorava a filha do Rolando Toro, inventor da biodança. Fiz desenhos para a filha dele, ela mostrou para o pai e Rolando me disse: ;Tu é um artista, vamos fazer uma exposição;. Nem barba eu tinha, fiz os desenhos sem prancheta, em cima da ama. Fico chocado de ver como a gente perde a inocência que tem quando é criança ou jovem. A gente vai ficando cerebral demais.
Que artista ou que vertentes te influenciaram?
O meu trabalho sofreu influência de três tendências: o cubismo, o expressionismo e o surrealismo. O cubismo analisa os objetos; o meu trabalho tem figuração quebra, caras de muitas faces e análise psicológica. O expressionismo vem pela crítica social, o dramatismo, o grito. E surrealismo pela liberdade total de criação. Com essas três vertentes me viro. Mas o artista que mais me influenciou foi Oswaldo Guayasamin artista plástico, ele é expressionista, mas com raízes indígenas. Vi quando morava no chile. Então, o meu trabalho tem essa raiz latino-americana muito forte. Toda a minha formação ocorreu no Chile. Estava lá quando aconteceu toda essa onda de revolução e questionamentos sociais.
Grande parte de sua produção ocorreu nos jornais. O que é importante para produzir ilustração na imprensa?
Acho que o mais importante é leitura, a capacidade de abstrair um texto e encontrar nele o que vai formar a imagem. Além disso, como artista criador, precisa ter algo a dizer, cada um vai ter de desenvolver mais uma poética. Um terá humor, outro será mais metafórico, e um terceiro mais político. Ao lado disso, você precisa colocar dar algo mais, a mais-valia, a dimensão poética. A notícia é muito crua, quando consegue fazer da notícia crua em uma linguagem poética ela transforma em algo mais humano.
No caso de sua poética particular, está mais para o trágico ou o dramático do que para o humor?
Eu tenho a impressão de que todo humor é negro. Só rimos do que a gente não aguenta. Ou se cai no chão, você ri. Todo humor parece uma decepção, uma crítica. Ao humor negro se contrapõe não o humor leve, mas uma coisa lírica. Tenho o humor negro, crítico, dramático, mas também a leveza, a natureza e a magia. Esses contrapontos para a tragédia humana são, digamos assim, os aspectos agradáveis e felizes da vida.
O que representou o jornal em sua trajetória?
É o lugar onde encontrei-me. É o lugar em que você pode carregar nas tintas literalmente. Permitiu-me dar vazão a meu lado crítico. Essa tendência mais realista encontrou expressão adequada. Possibilitou-me fazer o registro do sofrimento cotidiano e que me permitiu a sobrevivência. Qualquer artista que tenha visão mais crítica terá dificuldade de sobrevivência. Foi uma sorte, um privilégio, trabalhar em jornal.
Como evoluiu a sua linguagem nos jornais?
Começei no Jornal de Brasília, que não tinha computador. Eu usava uma caneta muito fininha, trabalha com tamanho. Era um minimalismo delicado. O curador Oto Reichneider valorizou muito essa parte de minha produção. Então, é bom a gente ver nosso trabalho com os olhos de outra pessoa. Quando entrei no Correio Braziliense, já tinha 10 anos de Hospital Sarah Kubistchek, onde aprendi aquarela, guache, lápis de cor e aerógrafo. Então já tinha um arsenal de recursos maior. Tinha posse dos recursos gráficos. Além da anatomia, eu dominava a técnica. O Correio tinha computador, recursos gráficos e valorizava a ilustração. O jornal é a maior faculdade do mundo para um ilustrador. No Correio, vivi a minha maturidade, o meu trabalho se consolidou.
O fato do Correio valorizar a imagem e a ilustração foram importantes em sua trajetória?
Para mim, foi fantástico. Devo muito ao Chiquinho Amaral, que me levou para o jornal em que a ilustração tinha uma força enorme no projeto gráfico. Chiquinho era um editor de arte que estava em uma escala superior ao editor de política.. Ele decidia o que ia para a capa. É uma tremenda escola, nunca vi ilustração ser tão valorizada. A partir da ilustração é que se fazia chamada. Sempre ficou essa tradição no Correio. Outro dia saiu um desenho bonito do Kléber na capa.
Como é trabalhar contra os ponteiros do relógio? Limita ou inspira?
O meu objetivo não é desenhar situações, mas, sim, conceitos. Digo sempre para meus alunos: Se alguém agrediu alguém, não vá desenhar o soco. Joga uma explosão de tinta sobre o papel para representar a ideia da violência. Esse trabalho implica em uma leitura imediata. Se tiver de interpretar, não funciona. Briga com a publicidade, as fotos, a reportagem. Precisa bater o olho e a imagem falar em si mesma. Se fala da literatura, pode desenhar um lápis de onde brota uma flor. É uma leitura poética, que sintetiza tudo.
Afinal, ilustração é arte ou arte gráfica? E onde você se situa?
Fiz concurso e virei professor do Colégio Militar. Mostrei para os meus alunos os trabalhos de Norman Rockwell e eles ficam babando. Eu digo: isso não é arte, é ilustração. Goya fazia ilustrações e era um grande artista. Norman Rockwell. Na ilustração, rola humor. Ela é mais narrativa do que a pintura. A fronteira é o lugar incômodo, mas é o mais interessante porque lá está acontecendo algo novo. É o lugar onde estou. É rica a fronteira, mas nem sempre quem faz ilustração encontra o seu lugar.
A internet abriu um novo campo de expressão e um novo mercado para os ilustradores?
Sim, tem o Zakuro Aoyama ou o Romont Willy, de Brasília, que ilustram para vários lugares do mundo. Profissionais muito bons foram revelados graças à internet. Mas no meu caso, não peguei esta fase, consegui me aposentar como ilustrador. Zakuro mora em São Sebastião, participou de uma aula comigo, veio de ônibus. Eu digo para os meus alunos, se você quiser se realizar profissionalmente, basta ser bom. Não importa se você é sapateiro, garçom ou ilustrador. O essencial é amar o que você faz. Sem isso, você não desempenhará bem o seu ofício. Se você gosta, tem uma chance grande de fazer bem e ser feliz.