Diversão e Arte

Ela mostra a que veio

Sem o rigor de organização na narrativa, a animação A cidade dos piratas, em cartaz, imprime perspectivas e valores da cartunista Laerte

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 10/11/2019 04:08
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;Laerte transcendeu: ela viu a uva, antes de todo mundo. Ela é uma gênia!”, afirma o cineasta Otto Guerra, ao falar de Laerte Coutinho, uma mola propulsora de toda trama do mais recente longa assinado por Otto, A cidade dos piratas. O tema da diversidade sexual norteia a obra daquele amigo que Otto conheceu nos anos de 1990 e que, volta e meia, se atrapalha, ao chamar de ;ele;. Vale sublinhar que, Laerte, há oito anos, assumiu mudança de gênero. Numa onda que chama de ;mansa;, Laerte teve precioso trabalho na realização de A cidade dos piratas. ;Da minha parte, propus argumento, trabalhei com roteiristas, troquei ideias;, observa. Na visão dela, os maiores desafios couberam a Otto Guerra, conhecedor da ;barra pesada que é fazer cinema no Brasil;.

;Estou super-representada no filme;, comenta Laerte, ao falar de resultados. A quebra de vínculo de Laerte com os personagens criados no passado (em Piratas do Tietê) dificultou o processo do filme, obrigando a adoção de metalinguagem. ;Laerte passou a considerá-los homofóbicos, machistas. Os via como múmias. Ainda que personagens políticos que saqueiam pessoas e cidades funcionem ainda hoje; o trabalho da Laerte evoluiu muito;, avalia Otto.

Em harmonia com o conteúdo do filme, Laerte percebe que delicadeza e acidez continuam em sintonia com sentimentos pessoais e com a produção diária. ;Acho que o filme traceja a direção meio anárquica que eu vinha imprimindo às tiras que produzo. Fora isso, meu movimento pela transgeneridade está no roteiro, inclusive com excertos de entrevistas;, explica.

Assumindo identidade de gênero, aos 57 anos, Laerte consolidou a admiração de Otto Guerra. ;Nasci nos anos de 1950, quando alguns viam como crime a homossexualidade. Agora, não se tem mais problema com isso. Foi uma mudança muito radical. Difícil é vermos os retrocessos de hoje, com tantos ;machões; tomando conta. Laerte fala, por meio do filme, deste medo da ;ditadura gay;. Uma era de homofobia a 1000. Aliás, ela é visionária do ódio. No começo de 2010, brincava com um personagem com o Azevedo, que continha ódio em botijões! Isso que nem se tinha homofóbico na Presidência;, conclui o diretor.



Entrevista / Laerte


Qual foi o ganho com a exposição da tua transgeneridade? Quem soube dar maior apoio?
Eu tive ; e estou tendo ; um processo de mudanças no campo do gênero que é bem positivo; e bem diferente do que acontece com a população trans no Brasil. Talvez isso se deva ao fato de ter me declarado transgênero num contexto, vamos dizer, de grande ;respeitabilidade;, com muitas aspas ; tanto pela faixa etária quanto pela profissão e situação social. Tenho procurado agir e atuar de modo que a minha experiência gere atitudes e reflexões positivas, produzindo resultados políticos que representem avanço em direitos.


Quais personagens teus perderam a vitalidade?
Todos os meus personagens foram intencionalmente deixados de banda, há uns 15 anos. Mantive a Muriel por algum tempo, porque me interessava do ponto de vista de elaboração do processo transgênero que eu vivo. Mesmo com ela eu parei. Não me interessa mais trabalhar com personagens que se prolonguem em muitos roteiros.


A crise moral vivida pelos brasileiros encontra precedente? De que forma a corrente reacionária tem interferido na tua produção?
Não faço uma conta muito minuciosa dessas coisas. Eu trabalho com o que encontro na realidade, incluindo a minha própria realidade subjetiva. Muriel estaria sendo espezinhada por fascistas, claro ; e estaria reagindo como reagia. Não lido mais com personagens, mas lido com as coisas. Trato dos assuntos nas minhas tiras, charges, desenhos ; e participando ao vivo também.


O que admira em Otto Guerra e quais outros artistas têm demonstrado lucidez?
Otto Guerra é um querido por centenas de razões ; por ser criativo, generoso, audacioso, por não se fechar em limites. Provavelmente há quem diga exatamente o contrário disso tudo, mas continue achando o Otto um querido. Há muitos artistas que eu poderia citar como portadores de lucidez, mas teria que deixar gente de fora, não acho legal.


Deus, que já foi personagem sob teu jugo, perdeu o posto na atualidade deste mundo extremamente virtual?
Jugo! Não bote Deus sob jugo, dá verruga (risos). Não sei como anda a religiosidade das pessoas. A julgar pelo crescimento da influência de igrejas em vários contextos, o Google não deve estar atrapalhando. Pelo contrário.


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