Diversão e Arte

Em seu novo disco, Emicida desafia estes tempos de ódio e intolerância

'AmarElo' tem rap com poesia do mineiro Alphonsus de Guimaraens, Fernanda Montenegro, samba, pop 'good vibe' e denúncia do racismo

Ângela Faria
postado em 10/11/2019 16:54

[FOTO1]Ismália, musa do poeta mineiro Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), virou rap. E com o auxílio luxuoso de Fernanda Montenegro. Obra-prima do simbolismo, o poema cruzou os séculos 19 e 20 para se encaixar nas rimas de Emicida numa das faixas mais supreendentes (e contundentes) do recém-lançado disco AmarElo.

A tragédia da moça enlouquecida por amor ; declamada por Fernanda ; serve de metáfora para o abismo da exclusão social imposta aos negros brasileiros. ;As asas que Deus lhe deu/ Ruflaram de par em par/ Sua alma subiu ao céu/ Seu corpo desceu ao mar;, rimou Alphonsus. ;Hasthags Preto no topo, bravo/ Oitenta tiros te lembram que existe pele alva/ e pele alvo;, rima Emicida.

Em sua letra, o rapper se refere aos 111 tiros da polícia que executaram cinco jovens em Costa Barros (RJ) e também aos 80 disparos de fuzil destinados ao carro do músico negro Evaldo Rosa, no Rio de Janeiro, durante operação do Exército.

;Pra mim, Ismália é mais contemporânea do que tudo. É a metáfora do que o salto da cidadania plena significa para a população não branca do Brasil. Ela tenta tocar aquela lua, mas despenca na pedra;, compara Emicida.

O rapper conta que Fernanda lhe ensinou muito, mas não se furtou a aprender. ;Ela foi de uma humildade gigante;, diz. A atriz já havia gravado o poema, mas pediu a Emicida para lhe explicar sua visão de Ismália. Ao ouvi-lo comparar a queda da moça com o abismo social no Brasil e o drama dos negros, não titubeou. Voltou parao estúdio e gravou tudo de novo.

Emicida não conheceu Alphonsus de Guimaraens nos livros de colégio. Aos 6 anos, foi apresentado ao mestre dos simbolistas pela voz de sua mãe, Jacira Roque. Viúva, quatro filhos para criar, ela estudava à noite depois de dar duro em três casas de família. Lia poesia em voz alta para memorizar as palavras, driblando assim as dificuldades de aprendizado.

;Eu e meus irmãos aprendemos a literatura do Brasil por osmose;, conta o rapper. E ele pegou, mesmo, gosto pela coisa. Tanto que o título de seu novo disco vem de um poema de Paulo Leminski (1944-1989). Diz assim: ;Amar é um elo/ entre o azul/ e o amarelo;. Outra referência veio de Manuel Bandeira e os girassóis do poema Pensão familiar.

Muriquinho do rap

Há outra metáfora do século 19 no disco novo de Emicida. A faixa Eminência parda é aberta pela paraense Dona Onete. ;Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino/ Purugunta onde vai/ Purugunta onde vai;, canta ela. Trata-se de um lamento dos escravos da região de Diamantina resgatado pelo linguista mineiro Aires da Mata Machado Filho (1909-1985), autor do livro O negro e o garimpo em Minas Gerais.

;É um canto de lamento dos amigos, que choram porque não podem seguir o menino que vai atrás da liberdade;, diz o rapper, revelando que o muriquinho ; o pequeno escravo que foge da senzala rumo ao quilombo ; é ele próprio. ;É a mão do Brasil escravista tentando me alcançar;, compara.

Na faixa, ouve-se a voz de um repórter informando sobre a prisão do rapper em BH, ocorrida em 13 de maio de 2012, por ironia Dia da Abolição da Escravatura. Durante um festival de hip-hop no Barreiro, ele cantou Dedo na ferida, crônica do drama de moradores de ocupações urbanas e favelas. A letra diz assim: ;O povo tem que cobrar com os Parabelo/ Porque a justiça deles só vai em cima de quem usa chinelo (;) Homens de farda são maus/ era do caos/ carniceiros ganham prêmios/ na terra onde bebês respiram gás lacrimogêneo;.

Preso por desacato à autoridade, Emicida respondeu a processo por cerca de três anos. Durante todo esse tempo, frequentou o fórum em São Paulo. Era o único negro a depor sem algemas por lá.

De 2012 para cá, muita coisa mudou para Emicida. Atualmente, é um dos rappers mais respeitados do país, montou a bem-sucedida empresa cultural Laboratório Fantasma, uma espécie de incubadora de talentos, mantém a grife de roupas LAB, responsável por desfiles históricos na São Paulo Fashion Week só com pretos e pretas na passarela.

AmarElo, seu terceiro disco de estúdio, tem letras contundentes. Exemplo disso é a faixa título, com direito a sample de Belchior (;Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas este ano eu não morro;). Eminência parda, Ismália e Libre são petardos contra o racismo e a exclusão social.

Da ;pedrada; à ;good vibe;

Porém, AmarElo transcende as tradicionais ;pedradas; do rap. Sete das 11 faixas passam ao largo de estereótipos associados ao hip-hop ; rapper com cara de mau, ;estética do ódio;, discursos panfletários contra o sistema. Não é novidade o diálogo de Emicida com o samba, o pop e a MPB, mas agora ele abraça com gosto a sonoridade ;good vibes;. Suas letras apostam no amor, no afeto e na tolerância como antídotos a esta era do rancor. O ódio não é estratégia eficaz, acredita ele.

O recado é direto na delicada Cananeia, Iguape, Ilha Comprida. Antes de a canção começar, Emicida é literalmente zoado pelas gargalhadas de sua caçula Teresa, de pouco mais de 1 ano, ao dizer que ;no emprego de rapper você tem de ser mau;. No refrão ; daqueles de tocar no rádio ;, o ex-enfezado manda cartas de amor para ;o mundo em decomposição;. A outra filha, Estela, de 8 anos, combina com o pai pôr flores amarelas nos cabelos das meninas. E dos meninos também.

Cercado por um belo time de orixás ; Fernanda Montenegro, Zeca Pagodinho, Marcos Valle e seu guru Wilson das Neves (1936-2017) ;, Emicida valoriza tanto a potência do rap quanto a comunhão com as delicadezas da vida. Com Zeca, canta a amizade (Quem tem um amigo tem tudo). Em As pequenas alegrias da vida adulta, fica feliz quando a tampa encaixa na Tupperware e há promoção de fraldas na drogaria. ;Sintoniza o estéreo/ o seu velho jazz/ Prum pesadelo estéril/ até durou demais;, aconselha em Paisagem.

Na abertura do álbum, Principia fala de Buda, salmos, milagres e Jesus. ;A música é só uma semente/ Um sorriso é a única língua que todos entendem;, canta ele. Pra lá de ecumênico, juntou na mesma faixa o pastor evangélico Henrique Vieira (com um sermão de arrepiar), as senhoras católicas do coro da Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, em São Paulo, e os agogôs do candomblé. É assim, ;anti-heresia;, a música sacra de Emicida.

Em várias faixas do disco, o rapper solta a voz. Está cantando, feliz da vida. Aliás, ouve-se em AmarElo um ;recital; globalizado: o português de Portugal do rapper Papillon; o inglês misturado com espanhol e iorubá do duo franco-cubano Ibeyi, formado pelas gêmeas Lisa-Kaindé e Naomi Díaz; a sonzeira esperta dos japoneses da Tokyo Ska Paradise Orchestra, que caem no samba em Quem tem um amigo tem tudo. Tudo isso, claro, temperado pelo legítimo ;português da quebrada; do anfitrião.

Com produção do respeitado Nave, AmarElo abre o rap a outras sonoridades. Estão lá o piano de Marcos Valle ; o craque brasileiro sampleado por Jay Z ;, os tambores da África, o canto ;Brasil profundo; de Dona Onete, o samba, a bossa nova, o soul, o pop inteligente. Detalhe: Emicida compôs a fofa Cananeia, Iguape, Ilha Comprida ao piano.

A força das mulheres

Neste projeto, as mulheres não são meras coadjuvantes. Muito menos encarregadas dos vocais de luxo e de, digamos, ;preencher a cota feminista; no mundo (ainda) machista do rap. Sem Larissa Luz, Fabiana Cozza, Drik Barbosa, a funkeira MC Tha, Dona Onete, as pastoras da Igreja do Rosário de SP, o coro formado por Indy Naíse, Nina Oliveira e Marissol Mwaba, e as gêmeas do Ybehy, AmarElo não teria a metade de sua força. Isso, sem falar de Fernandona.

Vozes emblemáticas do Brasil LGBQI que enfrentam corajosamente a violência homofóbica e o feminicídio, Pabllo Vittar e Majur fazem valer cada verso do manifesto-rap AmarElo. ;Permita que eu fale/ Não as minhas cicatrizes/ Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes/ É dar o troféu pro nosso algoz/ E fazer noiz sumir;, canta a dupla. A drag queen e a cantora que se classifica como ;não binária; têm legitimidade de sobra para fazer delas as rimas de Emicida.

Outra parceira do rapper é a fotógrafa Claudia Andujar, que assina a imagem dos curumins da capa do disco. ;Ter três crianças indígenas na capa, num período em que estão vendo a sua cultura e o seu modo de vida ameaçados, é colocá-las para encarar o Brasil dizendo: ;Sério mesmo? Vai acontecer tudo de novo?;, afirma ele no texto de apresentação do novo álbum.

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