Diversão e Arte

Contra a polarização e o confronto, festival no CCBB semeia espiritualidade

Ancestralidade espiritual, diversificação de modelos de cinema e música estarão em debate na realização do 6º Festival Internacional Cinema Transcendência, no CCBB

Ricardo Daehn
postado em 12/11/2019 07:12
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Dado o impacto, explosões de criatividade ; quando atingem a tela de cinema ; filmes podem render bilheterias e sequelas no público. Não apenas nos espectadores, mas ainda nos diretores. Quem sabe bem dos efeitos da sétima arte é o cineasta e músico André Luiz Oliveira, autor de Louco por cinema (1994) e do clássico Meteorango Kid ; Herói intergalático (1969), ambos protagonizados por pessoas sedentas de ruptura com o estabelecido. A ser exibido no 6; Festival Internacional Cinema Transcendência, com entrada franca, no CCBB, o longa completa 50 anos, alinhado à percepção de cinema de Oliveira e de Carina Bini, curadores do festival. ;Buscamos mostrar cinematografias as quais não se tem acesso nas salas de cinema convencionais. São filmes diferenciados;, conta o autor de Meteorango, que observa que, o filme é capaz de atingir um nível de admiração grande, rendeu anos de psicanálise para ele.
;Vou trazer a mesma cópia, chuviscada e com a densidade natural, em 35mm ; ela tem uma enorme carga histórica;, diz Oliveira. A perplexidade permanente ; com um mundo em transformação, nem sempre positivo ; leva o diretor e Carina Bini à proposta despretensiosa de atrair pessoas para um evento parrudo ; repleto de vivências, com sessões de massagem, apresentações musicais, mostra de cinema e oficinas e debates ligados à arte.
Oliveira gosta da escala do evento ; ;no tamanho certo; para ocasionar reflexão. Em 10 dias, a partir de hoje, serão quase 60 atividades integradas aos espaços do CCBB. A música é um dos meios da conscientização do público. Daí, com a morte do pai da bossa nova, João Gilberto, há quatro meses, veio o interesse de homenagear o artista que, ouvido aos 10 anos de idade, por Oliveira, mudou a vida dele. ;Houve uma felicidade incrível de aliar a homenagem à agenda de Moraes Moreira, muito influenciado por João Gilberto. Moraes, num encontro do evento, vai dar palestra, declamar poemas e mostrar a ainda não gravada música Santo João;, adianta.
Pela palavra e por relevância histórica, o festival deve captar a atenção com presenças de debatedores como Antônio Risério, historiador que ajudou a projetar o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. ;Ele é um polemista, um homem que escreve muito bem. Poeta, antropólogo ; ele tem uma visão muito ampla e muito rica de várias camadas do país. Desde sempre, o percebi como alguém muito corajoso e ligado à contracultura, tema que será explorado no evento. Ele está sempre na contramão, sempre surpreendente. Risério reflete muito sobre cultura, sobre o que está acontecendo com nosso país;, observa.


Entrevista// André Luiz Oliveira

A Índia tem grande importância nas festividades do 6; Cinema Transcendência? Qual a sua conexão com o país?


A primeira vez que tive lá foi em 1977. Ao longo dos anos, voltei cinco vezes, sempre motivado pela música ou pelo cinema. O tema do festival, este ano, está muito ligado à música. O aspecto da Índia se apresenta nos shows do evento, que terá músicos expressivos na difusão e na sonoridade. Há um fundo histórico no evento, diante do falecimento do baiano João Gilberto. É muito significativo o desaparecimento de um artista desta magnitude. Eu vejo um diálogo muito sutil entre a música nordestina e presença forte da música indiana. Pesquisei isso na universidade de Calicute (no estado de Kerala). Existe conexão, sim. Aqui, no Brasil, não tínhamos frutas, não tínhamos cachorros, não tínhamos bois. Tudo veio da Índia. Aprendi isso tudo com o professor Victor Leonardi, da UnB, que é autor do livro Os navegantes e o sonho. Há uma relação a ser desvendada entre Brasil e Índia, que é umbilical e nos traz reflexos. Foi limitada a importância, dado o eurocentrismo e o vigor das culturas indígena e africanas. Já em 1.500, nas ladeiras de Salvador, se falava a língua concani (fundamental em Goa).

Por que tanto interesse pela difusão dos sons indianos?


Há o aspecto especial de a música, na Índia, trazer à tona questões centrais associadas a divindades. Lá, há quase um monopólio de difusão espiritual. Na rua, há milhões de imagens de deuses. É um país que respira espiritualidade. Noto uma identificação minha com esse tipo de sintonia. A música está muito conectada com a espiritualidade. Lá, existe um sistema de aprendizado, o nada yoga, que alinha ioga e música. A música é uma ferramenta para se atingir uma comunicação com o divino. Um continente que vibra com a modalidade de expressão musical é intrigante. Nisso, se alcança um estágio muito próximo com o que consideram divino. Isso me fascina desde os 18 anos. Usei sitar, que me capturou, me golpeou, no meu primeiro curta que fiz: usei a música do George Harrisson, Whithin you without you, em Doce amargo (1967). Também em A lenda do Ubirajara (1975), para contrariar antropólogos dogmáticos, optei pela liberdade artística, com uso de Ravi Shankar, e trouxe uma raga (elemento da música clássica indiana) muito bonita, em Louco por cinema, em que toquei, ao final do filme.


O seu longa Meteorango foi festejado em exibição em Salvador e estará em projeção no Museu de Arte Moderna. Estará em Cinema Transcendência. Como o revê?

Ele ainda é um filme que incomoda, é algo perene. Incomoda até a mim. Passados 50 anos, ainda me surpreendo com minhas limitações e virtudes que estão impressas. Eu era machista, racista, filho de uma família de classe mádia baiana, provinciana. Tinha preconceito e homofobia. Éramos também jovens, na minha geração, inconformados com o que acontecia ao país. Veio a grande repressão e a revolta muito incontida ; refletíamos o desconforto desta herança. Junto com o incômodo, vem a alegria da exorcização dos elementos que não ousava admitir.



Qual o impacto de João Gilberto na trajetória de Os Novos Baianos?


Os Novos Baianos era um grupo de rock, que teve músicas originais usadas em Meteorango Kid. Eles, com a presença de João Gilberto, deram uma cambalhota e reencarnaram. Tocaram Brasil Pandeiro, começaram a entender o Brasil de outra forma. Não preciso falar da dimensão artística, planetária, mundial de João. Ele interveio de forma amorosa, sutil, artística e espiritual num grupo alucinado de rock. Os caras viraram Os Novos Baianos, de fato, recheados de qualidades. Eles têm uma vibração em algum tipo de jovens que é muito forte. Moraes Moreira foi quem melhor absorveu a intervenção de João. As composições dele mudaram da água para o vinho. Ele já contou histórias incríveis no longa Os filhos de João ; Admirável mundo novo baiano. Mas, pessoalmente no festival, Moraes vai enriquecer a discussão, vai falar, tocar, contar de como quis largar o violão, ao ver o patamar de João Gilberto na frente dele. Moraes diz: "Isso não é para mim, não. É para profissional" (risos).


No festival haverá exibição de Iaô (1976) do Geraldo Sarno, cineasta ligado ao campo popular e ao candomblé. Qual o ganho para o espectador, em época de descrenças?


O festival propõe abrir um leque de possibilidades de diálogo com outras culturas. Em 1976, o Geraldo já buscava ver as raízes deste país, da nossa cultura. Isso que, hoje em dia, as pessoas estão se afastando, e que parece esfacelado. Estão importando hábitos e matrizes, modelos padronizados de escrever nossa natureza. Cabe à resistência, mostrar que há elementos nacionais também. Embate não é bom: polarização nunca fez bem a ninguém. Um filme sobre iniciação ao candomblé e que tem uma densidade incrível é indispensável. Chamamos o Geraldo Sarno para contar sobre o que foi estar lá, dar o testemunho dele. São elementos que enriquecem quem está a fim de sair desta dicotomia. Uma saída para deixar a ignorância e a perversidade de se vermos uns contra os outros.
Confira programação completa no Roteiro.

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