postado em 17/11/2019 04:16
[FOTO1]O pensamento conservador saiu das minorias ricas e alcançou as periferias das grandes cidades, justamente onde moram os excluídos, os vulneráveis... As vítimas históricas do racismo. Por quê?
Vivemos tempos sombrios, de pouca racionalidade, muita gritaria, muita intolerância e radicalização. Existe um clima de desânimo e de grande frustração no Brasil e no mundo todo, devido às promessas de combate à pobreza e de melhoria das condições de vida que nunca se cumpriram. A concentração de renda nunca foi tão grande. As jornadas de trabalho se tornaram exaustivas. A vida urbana é caótica, perigosa e estressante. Nesse ambiente de incerteza e falta de sonhos, grupos poderosos tentam manipular a opinião pública tentando desqualificar pesquisas e conclusões científicas no que diz respeito ao meio ambiente e à própria história. Usam como arma argumentos nacionalistas e preconceituosos que, no passado, provocaram grandes tragédias na história da humanidade. O alvo mais vulnerável é justamente a população de menor escolaridade, que nunca teve a chance de desenvolver um filtro crítico contra o discurso extremista e manipulador. A ignorância, como se sabe, é um instrumento muito eficaz de dominação.
Você destaca no livro Escravidão que ;onde houve ser humano, houve escravidão;... É esta a nossa natureza?
Infelizmente, sim, a escravidão parece fazer parte do código genético do ser humano. Existiu em todas as grandes civilizações, incluindo a Babilônia, o Egito, a Grécia, Roma, os territórios dominados pelo islã e a própria África antes da chegada dos europeus. No Brasil, envolveu tantos indígenas quanto africanos escravizados.
Antes de investir maciçamente no tráfico de cativos africanos, os portugueses tentaram de todas as maneiras suprir as necessidades de mão de obra da colônia com escravos indígenas. Estima-se que, na época da chegada de Cabral, haveria entre três e quatro milhões de indígenas brasileiros, distribuídos em centenas de tribos. Falavam mais de mil línguas e representavam uma das maiores diversidades culturais e linguísticas do mundo. Foram massacrados por doenças, guerras e ocupação de suas terras.
O Brasil matou, em média, um milhão de indígenas a cada 100 anos até a chegada da corte de Dom João, em 1808. Ainda hoje, o regime escravista persiste no mundo e no Brasil sob formas de trabalho desumanas, indignas e inaceitáveis para os padrões éticos que julgávamos ter atingido neste início de século 21. Uma organização britânica a Anti-Slavery International (mais antiga entidade de defesa dos direitos humanos, fundada em 1823 para combater o tráfico negreiro) afirma que existem atualmente mais escravos no mundo do que em qualquer período nos 350 anos de escravidão africana nas Américas.
Seriam 40 milhões de pessoas vivendo hoje em condições de vida e trabalho análogas às da escravidão, ou seja, quatro vezes o total de cativos traficados no Atlântico até meados do século 19. Ainda segundo a Anti-Slavery Internacional, a cada ano, cerca de 800 mil pessoas são traficadas internacionalmente ou mantidas sob alguma forma de cativeiro, impossibilitadas de retornar livremente e por seus próprios meios aos locais de origem. E lamentavelmente, o nosso Brasil aparece sempre com destaque nessta lista suja.
Escravidão é o primeiro capítulo de sua nova trilogia; pode adiantar quais abordagens os outros dois volumes terão?
Os três livros compreendem uma série de ensaios e reportagens de campo e, sempre que possível, procuram seguir uma ordem cronológica. O primeiro volume, lançado na Bienal do Rio de Janeiro 2019, tem seu foco principal na África ; pela óbvia razão de que, ao escrever sobre a escravidão no Brasil, é preciso começar pela África. Cobre um período de, aproximadamente, 250 anos, entre o início das incursões e capturas de escravos pelos portugueses na costa da África, em meados do século 15, até o fim do século 17. Traz também alguns capítulos sobre a escravidão em outros períodos da história da humanidade, como na Grécia Antiga, no Egito dos faraós, no Império Romano e nos domínios do islã e na própria África antes da chegada dos portugueses.
O segundo livro, previsto para 2020, concentra-se no século 18, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no Brasil e pela disseminação do cultivo de cana de açúcar, arroz, tabaco, algodão e lavouras e do uso intensivo de mão de obra cativa em outras regiões do continente. Num período de apenas 100 anos, mais de 6 milhões de seres humanos foram traficados da África para as Américas, dos quais 2 milhões (um terço do total), só para o Brasil.
O terceiro e último livro, a ser lançado em 2021, se dedica ao movimento abolicionista, ao tráfico ilegal de cativos, ao fim (pelo menos do ponto de vista formal e legal) da escravidão no século 19 e ao seu legado nos dias atuais. São também abordados, nos dois volumes finais da trilogia, temas como a família escrava, as alforrias, a escravidão urbana, as festas, as irmandades e as práticas religiosas, a assimilação, as fugas, as rebeliões e os movimentos de resistência. (JCV)