postado em 28/11/2019 04:08
[FOTO1]Em tempos em que índios e negros são afrontados por procuradores de Justiça, fica difícil encontrar um centro, no holofote de picadeiro em que tem se transformado o palco político. Entre a perplexidade e um texto de elaboração complexa (narrado à perfeição por Fernanda Torres), o documentário assinado por Francisco Bosco e Raul Mourão busca um eldorado, entre a selvageria dos discursos de esquerda e de direita: a moderação. Nela, há a riqueza da ampliação de ideias e a intermediação de diálogo. Mas poucos atores sociais estão dispostos ao esforço.
Conceitos como o de ;cidadania afastada;, circunstâncias de fúria como a da remoção compulsória de pessoas (no tirânico pré-requisito para a estruturação da Copa no Brasil) e a movimentação pelo passe livre, na tela, ganham um relato em nada apaixonado. Prevalece o tom expositivo. Numa onda de velocidade entorpecente, grande parte do painel recente do país encontra o frescor da memória (do espectador) e a sumarização (fria) de um filme documental. Num dos segmentos do longa, sob o título O nó górdio ; se explicita a sensação de perpétuo impasse de um problema insolúvel (e indissolúvel) chamado Brasil.
O afivelamento político dos brasileiros ; antes dados ao carnaval e ao futebol ; encontraria estratégias empregadas em ambas as paixões nacionais. Em cena estão conceitos ligados a quebras sucessivas de pactos sociais (outrora preconizados pelo governo) e a política de boa vizinhança do PT junto aos paramentados caciques da velha guarda, entre os quais Renan Calheiros e José Sarney, além da ação de juízes (com telhado de vidro?), na ;república de togas; alardeada pelo jornalista Reinaldo Azevedo, um dos entrevistados pela equipe.
Adereços exóticos não faltam ao painel montado pelos diretores que destacam: a ;politização no ensino;; a figura nefasta e sombria de Michel Temer (descrita pelo psicanalista Tales Ab;Saber), o estapafúrdio elemento da ;paranoia comunista; e a ocupação dos centros urbanos por populares com figurinos bem desbotados. Para além de tudo isso, o comportamento infame de parlamentares, na centelha da instauração do processo de impeachment de Dilma Rousseff, está registrado no longa. No sumo, o filme dá chão para o povaréu da base da direita radical, bem como relativiza a expressão golpe (que ganha a versão ;parlamentada;). Na análise seca, as causas e ideais de cada cidadão ganham representação anêmica e sem rede de proteção. Como que dissecadas, a sangue frio.
Povo refém?
Questionar o lugar dos subalternos na sociedade (dentro de um país ;psicopatiado; como o Brasil, na visão da psicanalista Maria Rita Kehl) desemboca na anomia (com desfiguração de traços de identidade), imperante e contemporânea. Longe do confortável ; se tomado o norte da idealização de um mundo moderno sustentado ;por liberdade;, como prevê uma das personalidades entrevistadas ;, o discurso de Francisco Bosco (roteirista) dá lastro para polêmicas. Da falta de autocrítica do Partido dos Trabalhadores à ladeira abaixo de um país (que desce, num elevador de canteiro de obras ; numa menção ao enlace de elementos como empreiteiras, poder e Lava-Jato?), passando pelo arvoramento político de Sérgio Moro; nada passa batido no tratado que formulou a atual intolerância nacional.
Entre o exame de repressão policial (atossicada, num primeiro momento, até mesmo por parte da mídia), a liquidação da imagem de um povo dado como mera massa de manobra (dona, agora, de ações políticas que navegam na internet), e argumentos vetustos para a restauração de ;valores da tradição;, a sociedade brasileira, no filme, segue à sombra do cadavérico (e nunca enterrado) mês de junho de 2013.
Longe da comoção que poderia ser alcançada em retratos particularizados de figuras do povo, O mês que não terminou conclama, reflete, fomenta, mas não se presta a conclusões. Sucateada, tal qual o fusca dependurado, em cena (numa alegoria da sangria de um sucesso à época da ditadura) caberia à sociedade, no filme-ensaio, a fissura da dualidade, do desencontro? Decantado, o discurso de O mês que não terminou aponta para um Estado que é pai, pai-patrão, que pretende inspirar medo e protege ante a incertezas, maquiavelicamente, previamente plantadas. Para piorar, fica no imaginário a cena de uma boca com língua cortada (à la Pasolini), num artifício de reprimenda à expressão. Sem censura, O mês que não terminou comunica, e muito.