Diversão e Arte

Documentário de Vladimir Carvalho encerra Festival de Brasília

'Giocondo Dias - Ilustre clandestino' narra a história de um membro do partido comunista

Nahima Maciel
postado em 30/11/2019 06:30

[FOTO1]

Quando era menino, Vladimir Carvalho ouviu falar de Giocondo Dias em várias ocasiões. Filho de um militante do Partido Comunista Brasileiro, o cineasta sabia que ele era uma lenda. Militar, Giocondo participou da Intentona Comunista de 1935, tomou um quartel em Natal inspirado por Luís Carlos Prestes, ficou conhecido como o ;cabo vermelho;, foi preso e viveu mais de um terço da vida na clandestinidade, boa parte dela tentando convencer a cúpula do partido de que a luta não devia ser por meio de armas, e sim pela via democrática.

;Essas coisas todas se juntaram na minha memória, inclusive afetiva, porque vinha do meu pai, e quando me entendi por gente e pude tomar um rumo independentemente de qualquer influência de meu pai, ingressei no partido e comecei a saber, de forma mais objetiva, sobre esse Giocondo Dias;, conta Carvalho, que encerra o 52; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro hoje, com apresentação de Giocondo Dias ; Ilustre clandestino.

A decisão de transformar a vida do militante em filme ficou latente na cabeça do cineasta paraibano desde os anos 1960, quando foi trabalhar no jornal Novos Rumos, editado pelo Partido Comunista e sob o comando do próprio Giocondo. Carvalho foi apresentado ao então clandestino rapidamente. ;De um modo geral, me tornei meio obstinado de um dia fazer o filme; conta. Essa possibilidade surgiu quando encontrou, em Brasília, o argentino Hector Santarém, que participou da operação de resgate de Giocondo em 1976.

Na época, vários membros do comitê central do partido começaram a ser assassinados. Por isso, Giocondo foi retirado do país e enviado a Moscou (na então União Soviética), onde já estavam vários membros, inclusive Luís Carlos Prestes. ;Hector deu um depoimento e orientei essa entrevista, filmada por Pedro Lacerda e Waldir de Pina, de forma que, a partir daí, assumi que faria um filme tentando por esse perfil de pé;, conta o diretor. Ilustre clandestino é um documentário feito de retalhos, com entrevistas com pessoas que, de alguma forma, tiveram ligação com o militante.

Conforto

Se fosse vivo, Giocondo teria 106 anos. Logo, boa parte de seus contemporâneos não estão mais vivos, o que dificultou bastante o trabalho de Carvalho. ;Mas há pessoas que o conheceram e que eu entrevistei. O resultado é esse filme. É uma cena de certo conforto para mim, porque ficou sendo um filme, de certa forma, não vinculado com o momento que a gente vive;, garante o diretor. ;Nos anos que precedem a redemocratização, ainda na saída do Figueiredo, ele articulou-se com todo o partido e eu tive a ocasião de vê-lo no congresso e nos gabinetes recolhendo assinatura para aprovação do partido na legalidade. Fui apresentado a ele rapidamente.;

Se o filme não teve motivação política ligada ao momento vivido pelo Brasil, há uma conexão importante com os dias de hoje que Carvalho faz questão de ressaltar. A personalidade pacifista de Giocondo Dias e sua inclinação para o diálogo são pontos importantes do perfil. Segundo o diretor, o personagem era amigo de infância de Carlos Marighella e teria tentado, durante uma conversa de 10 horas, convencer o amigo a não dar início a uma luta violenta. Não conseguiu. No entanto, mais tarde, foi voz fundamental na legalização do Partido Comunista Brasileiro durante a redemocratização. ;O perfil de não às armas, procurando a via democrática, tem muito a ver com os dias de hoje, principalmente quando temos um presidente que funda um partido cujo painel é feito de bala e fuzil, pensando em transformar o Brasil em uma praça de guerra;, garante Carvalho, que fez questão de colocar no cartaz do documentário a frase ;Adeus às armas e apelo ao diálogo;.

Ilustre clandestino é um filme de entrevistas inteiramente bancado pelo próprio diretor. Ele não recorreu a editais de financiamento público e teve apoio apenas da Fundação Astrogildo Pereira, que trouxe alguns dos entrevistados. ;Assumi a produção, não queria depender de ninguém, foi difícil. É um filme muito simples;, avisa. Entre os entrevistados há figuras como Ana Maria Dias, filha de Giocondo, e Sérgio Besserman, filho de um médico que emprestou o consultório para o militante se esconder, além de Régis Frate, integrante do comitê central do PCB quando Giocondo foi enviado a Moscou.

DEPOIMENTO

Porque Giocondo Dias

Vladimir Carvalho

;Meu pai, o mestre Lula, recebia o capa preta do partido que desembarcava à noitinha do trem da Great Western, na estação de Itabaiana, Paraíba, naqueles remotos tempos dos anos de 1940. Aquele ou outro camarada, à sombra da clandestinidade, estava sempre de passagem e trazia a orientação do comitê central às bases espalhadas pelo país afora. Não raro trazia também um livro, que emprestava ao dirigente local, literatura que ia de textos doutrinários a obras de ficção enaltecendo heróis do povo.

O volume era devolvido pontualmente no outro dia, no regresso do enviado. Esse expediente exigia certa disciplina e, mesmo sendo leitor voraz, meu velho varava a noite em claro, lendo sem parar à luz de candieiro, pois o cansado ;motor da luz;, engenhoca da municipalidade, estancava logo cedo deixando a cidade às escuras.

Giocondo com o escritor Jorge Amado, que também era ligado ao Partido Comunista

Foi nesse clima que me alfabetizei tentando decifrar os quadrinhos de Brick Bradford, publicados no suplemento dominical do Jornal do Commercio, do Recife, e soletrando trechos do Menino de engenho, de Zé Lins do Rego, que meu pai lia para nós depois da ceia. Foi de sua boca que ouvi pela primeiras vez referências a Giocondo Dias, o ;cabo vermelho;, como foi apelidado, que tomou um quartel em Natal, durante a Intentona Comunista de 1935. Era um tempo de guerra na Europa e um dia assistimos à despedida de um trem lotado de pracinhas que iam lutar na Itália. Houve choro e banda de música na estação. No Rio de Janeiro, Prestes estava preso sob o tacão da ditadura Vargas. Jorge Amado contaria tudo depois nos seus Subterrâneos da liberdade.

[FOTO3]

Passado o tempo, com a vitória dos Aliados sobre o nazismo e o regresso da FEB, mestre Lula explicou-me o que acontecia e as mudanças que se prenunciavam com a redemocratização e a queda da ditadura no Brasil, com a subsequente libertação de Prestes e a volta à legalidade do Partido (Comunista). Até mesmo o significado do meu nome ele me explicou como sendo uma sua homenagem ao grande Lenine. Vieram as eleições e os comunistas obtiveram estrondosa votação. Prestes, surfando na onda, era eleito senador e deputado. Como deputado se elegeu também Giocondo, na Bahia. Meu pai exultava porque fora eleito vereador em Itabaiana! Um ledo hiato tão glorioso quanto breve. Porque em seguida aconteceu o inevitável, obra do governo reacionário do marechal Dutra: a cassação, em 1947, do partido e de todos os comunistas legitimamente eleitos.

Enfim, tudo me veio por essa via paterna. Mesmo depois de nos deixar, vítima de crônica cardiopatia, no ardor de seus trinta e nove anos de idade, sintonizado com o mundo e com sua aldeia, ainda hoje Mestre Lula me sopra nos ouvidos ideias e até decisões, como se fora uma ;entidade;, uma voz do além, um espírito do bem. Foram esses ;sopros;, eivados, diga-se de passagem, de ;materialismo histórico;, que me levaram à militância do partido no final dos anos de 1950, na fase em que este já repudiava a solução pela ;luta armada; e Giocondo Dias pontificava no semanário Novos Rumos (São Paulo), tornando-se um paladino desta inarredável posição desde as lutas internas no comitê central. Por coincidência, eu era correspondente do jornal na Paraíba e lia assiduamente os seus textos. A sua lição de vida, atravessando longa clandestinidade, ficou-me para sempre como exemplo.

Aqui saio pela tangente: tudo isso tem e não tem a ver com o filme sobre Giocondo. É puro subjetivismo que não transparece a não ser em imperceptíveis entrelinhas de sua narrativa. Não vou dar aqui nenhuma pala, perdão, spoiler do meu filme, mesmo porque seria laborar em causa própria. Mas sinto que num momento em que o presidente funda um partido que tem, como emblema, um pesado painel composto todo ele de balas de metralhadora e vê o país como colossal praça de guerra, está na hora de fazermos mais filmes na linha em que intentei. Ou quem sabe seguirmos todos o papa Francisco em sua pregação pela paz mundial!”


Cerimônia de encerramento do 52; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Giocondo Dias ; Ilustre clandestino, de Vladimir de Carvalho (sessão para convidados). Hoje, às 19h, no Cine Brasília.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação