Diversão e Arte

Livro analisa o cinema russo dos clássicos aos modernos

'Cinema para russos, cinema para soviéticos', de João Lanari, apresenta um amplo painel da cinematografia russa

Severino Francisco
postado em 30/11/2019 06:30
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De certa maneira, o cinema revolucionário russo monopolizou a atenção e excluiu outras cinematografias. Em Cinema para russos, Cinema para soviéticos (Ed. Bazar do Tempo), o professor da Universidade de Brasília, João Lanari, amplia o foco para lançar um olhar mais amplo sobre o campo de experiências cinematográficas.
Ele analisou mais de 150 filmes com a mira em detectar as complexas relações entre as turbulências da história e sua ressonância na criação dos filmes. Cinema e política, poder e controle ideológico, propaganda e linguagem são confrontados criticamente. Da era tsarista à virada socialista, de Stálin a Lenin, de Eisenstein a Tarkósvki, do cinema pré-revolucionário ao cinema moderno. Em entrevista ao Correio, Lanari fala sobre as circunstâncias do surgimento do cinema russo, das rupturas, e da relação entre política e cinema, entre outros temas.



O que propiciou o surgimento de uma história tão inventiva e tão rica de experiências no cinema russo? Por que é relevante rever essa cinematografia?
Além da rica tradição cultural russa ; basta lembrar a literatura ;contribuiu sem dúvida alguma para esse surgimento a liberação de forças produtivas desencadeadas pela revolução soviética. Esta a razão inicial, a meu ver, para investigar essa cinematografia, que incorporou a ruptura social da revolução e estetizou a história. Por isso é relevante estudá-la, pois em nenhum outro lugar isso aconteceu com tanta violência, no momento mesmo em que o cinema se firmava enquanto linguagem artística. No meu livro, procurei resgatar igualmente a história do cinema no período pre-revolucionário, que foi relegada, injustamente, a um segundo plano em virtude da canonização do cinema soviético na década de 20, assim como a produção cinematográfica de filmes desvinculada do projeto vanguardista que teve seu ápice nessa década. Na sequência da história, o cinema naturalmente foi impactado: partir dos anos 30, entra em cena o "realismo socialista" de Stálin, depois a SegundaGuerra, a Guerra Fria e a morte de Stálin, gerando novas modulações de linguagem e recepção do público, objeto também da minha pesquisa, que vai até 1968.

Cena do filme Andrei Rubliov, dirigido por Andrei Tarkóvski: na contramão do cinema político
Em que medida o cinema revolucionário russo monopolizou a história e excluiu outras cinematografias? Qual a relevância das cinematografias excluídas?
Creio que o cinema revolucionário excluiu outras cinematografias pela leitura canônica que dele fizeram as cinematecas, os críticos e o cineastas engajados fora da URSS ao longo do século 20, pelo menos enquanto o regime comunista sobreviveu. O cinema revolucionário soviético, obra de grandes diretores como Eisenstein, Vertov, Pudovkin e Dovjenko, ocupa um lugar absolutamente especial na história do cinema, não há como contestar. Mas a ênfase continuada nesse destaque obscurece o fato de que outros estilos de cinematografia eram praticados na União Soviética, filmes de gênero ; aventura, comédia, etc. ; que configuravam uma cultura popular vibrante e variada, inclusive com mais resposta de público do que os filmes de vanguarda. Se acrescentarmos a esse caldeirão os filmes importados - o maior público na década de 1920 na URSS, por exemplo, foi Ladrão de Bagdá, de Raoul Walsh, em 1925 - não há dúvida que é necessário olhar para esses outros modelos de fazer cinema para se entender o que se passava no vasto território soviético. É importante lembrar, também, que durante essa primeira década prevaleceu a NEP, liberalização comercial parcial adotada por Lênin que permitiu recuperação econômica do país, até ser encerrada por Stálin.


Por que você privilegiou a análise das conexões históricas ao traçar um panorama sobre o cinema russo?
Esta era a proposta original do livro. Acho que a motivação disso vem da história russo-soviética mesma, dos ciclos que a caracterizam, dos discursos que a atravessam, da radicalidade dos seus momentos extremos às prioridades escolhidas para conduzir a nação. Isaiah Berlin ; que nasceu em Riga, na Letônia, mudou-se para São Petersburgo onde viveu até 1921, quando sua família emigrou para a Inglaterra ; apontava um equívoco central no bolchevismo: a certeza de que a razão é capaz de nortear os avanços da história. Para ele, trata-se de uma má leitura da filosofia hegeliana da história. A força material dessa construção ideológica não é, de modo algum, desprezível, e obviamente influenciou muito o cinema que se fazia na URSS.

O cinema revolucionário russo aparece colado à política, no entanto, os grandes cineastas e artistas do período também tiveram embates com o poder da revolução. Como situa as relações entre os artistas de vanguarda e os dogmas da revolução política?
Era inevitável que o projeto utópico do cinema revolucionário acabasse se chocando com a realidade da vida política na União Soviética, sobretudo a partir da ascensão de Stálin e a centralização do poder que ele articulou, no final dos anos 1920 em diante. Todos os artistas de vanguarda tiveram de lidar com esse fato, reagindo de formas variadas, mas continuando a produzir. Muito dessa produção também aparece ofuscada do ponto de vista histórico, mas excelentes filmes foram produzidos nesses períodos, a despeito das limitações e do controle censório imposto pelo governo. O caso de Eisenstein é bastante ilustrativo e conhecido: depois de quase uma década sem terminar um filme, consegue realizar Alexandre Nevski em 1938, obtendo sucesso de público (o maior que conheceu em vida) e agradando o Kremlin. Nas boas graças de Stálin, é convidado a realizar Ivan, o Terrível, em plena guerra contra os nazistas (o filme foi rodado no Cazaquistão). A primeira parte estreou em 1944 e foi premiada: a segunda, em que Eisenstein aprofundou os traços sanguinários do Czar, chocou. A sessão no Kremlin, em março de 1946, foi um desastre: Beria disse que as cenas coloridas da dança dos guerreiros protetores de Ivan lembravam um "shabat de feiticeiras", enquanto Stálin viu rastros da Ku Klux Khan: ;isto não é um filme, é um pesadelo", disse. Eisenstein nunca mais dirigiu filmes e morreu dois anos depois, em 1948, com 50 anos de idade. A segunda parte de Ivan, o Terrível só foi liberada cinco anos após a morte de Stálin.


O cinema russo moderno rompeu totalmente com as experimentações do cinema revolucionário ou ele assimila a linguagem dos grandes cineastas do período clássico da cinematografia russa?
É famosa a crítica que Tarkovski faz do cinema de montagem intelectual de Eisenstein. A manipulação do tempo-espaço, para os cineastas do período vanguardista da década de 1920, era fundamental para criar uma nova linguagem cinematográfica e consolidar o cinema como instrumento de conscientização social. Era um projeto que visava acoplar o cinema à marcha revolucionária da História. Quando Tarkovski começou a produzir, Stálin tinha acabado de morrer e o momento era de crítica a essa utilização do cinema. O caso de Tarkovski é o mais extremo: para ele essa manipulação era errônea, aprisionava o espectador em um esquema pré-estabelecido e rígido. Mas em diversos outros diretores do moderno cinema soviético não existe essa oposição forte à vanguarda revolucionária, existe uma assimilação dos experimentos ; muitos dos alunos de Eisenstein, contemporâneos de Tarkovski, referiam-se ao mestre com extremo respeito.

Como situa o cinema de Tarkóvski numa história tão marcada pelo olhar político?
Tarkóvski foi um artista absolutamente genial, representativo dessa transição que se anunciava na União Soviética (morreu em 1986, igualmente cedo, com 54 anos). Seus filmes lograram uma espécie de interiorização da política, subvertendo essa ênfase na política que tanto impactava na produção cinematográfica. Ele era um dos que pelejava constantemente com as instâncias censórias para fazer os filmes. Mesmo em A Infância de Ivan, seu primeiro longa-metragem, em que assumiu o projeto de um colega e acabou ganhando o Leão de Ouro do Festival de Veneza em 1962, as rusgas eram permanentes. Durante a elaboração do roteiro, que tinha de ser submetido seguidamente para aprovação, Tarkovski queixava-se de que "sempre que tentávamos substituir a causalidade narrativa pela articulação poética, surgiam protestos das autoridades do cinema;. Ou seja, um cineasta-poeta em permanente rota de colisão com o sistema.


Embora não seja tema do livro, como vê a interação do cinema brasileiro com o cinema russo?
A interação é riquíssima, não é necessário reiterar. O Cinema Novo deve muito às experimentações do cinema revolucionário soviético, e o cinema contemporâneo à linguagem poética de Tarkóvski e Sokurov, sem dúvida.

Cinema para russos, cinema para soviéticos
De João Lanari
Ed. Bazar do Tempo/ 304 páginas

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