Diversão e Arte

Brasília e a ditadura estão inseridas no novo livro de Milton Hatoum

Milton Hatoum lança, no Beirute, segundo volume de trilogia que acompanha personagem da adolescência à idade adulta

Nahima Maciel
postado em 03/12/2019 06:33

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No segundo volume da trilogia O lugar mais sombrio, Martim, o protagonista, embarca em delírios frutos de uma confusão mental decorrente de um trauma familiar. Ele não está mais em Brasília, como no primeiro volume. Dessa vez, o livro se divide entre São Paulo e Paris. Mas a capital federal marcou para sempre o personagem criado por Milton Hatoum. Em Pontos de fuga, que o autor lança hoje no Beirute da Asa Sul, Martim vai se tornar um exilado político, a ditadura está no auge e a busca pela mãe toma proporções dramáticas.

[SAIBAMAIS]

Apesar do deslocamento da narrativa para São Paulo e Paris, Brasília ainda é muito presente e deixou marcas no personagem. ;Várias marcas;, avisa Hatoum, que tem com a trilogia uma relação autobiográfica, já que ele também viveu na capital nos anos 1960, como estudante. ;Os amigos, a escola (o finado CIEM), o espaço da cidade, a solidão, a beleza do cerrado, a formação intelectual, política, sentimental... E também a literatura. Meu primeiro poema foi publicado no Correio Braziliense, não me lembro se em 1968 ou 1969. Mas a longa temporada na capital foi também traumática, por causa da repressão e do ambiente opressivo. Tudo isso deixou marcas profundas também no Martim, o narrador central do romance. Na vida do Martim a ruptura mais profunda é o sumiço involuntário e misterioso da mãe;.

Pontos de fuga se passa no início dos anos 1970, mas há dezenas de diálogos que parecem perfeitamente adaptados aos tempos atuais. E eles não são coincidências. Segundo o autor, estão lá como prova do inevitável ciclo do autoritarismo na América Latina. O ;eremita da república;, os ;pirados do Itamaraty;, jovens ;arquitetos talentosos e sonhadores; engolidos por ;construtoras e governos;, tudo parece pescado na sucessão de acontecimentos dos últimos anos. ;O autoritarismo volta com novas feições, num contexto local mais ou menos democrático, e com diferenças em relação ao contexto internacional;, repara o Hatoum.

Como a turma de Martim é formada, basicamente, por estudantes de arquitetura, Brasília também entra no livro como alvo de longas discussões. Ora um delírio, ora um símbolo da utopia possível, a cidade é um personagem. Essa é uma das razões para Hatoum lançar o romance na cidade. ;A primeira é a amizade;, avisa, lembrando que foram Carlos Marcelo, ex-editor executivo do Correio e atual editor do Estado de Minas, e o poeta Nicolas Behr que o convenceram. ;Tenho amigos, leitoras e leitores queridos na capital. Além disso, no Pontos de fuga,Brasília reaparece nas lembranças de Martim, nas cartas de Angela, na fala e na imaginação de vários personagens. E nem é preciso dizer que Brasília faz parte da minha vida.;

São Paulo e Paris estão na narrativa de Milton Hatoum

Lançamento de Pontos de fuga, de Milton Hatoum

Hoje (03/12, terça), às 19h, no Beirute da 109 Sul

TRÊS PERGUNTAS // MILTON HATOUM

Apesar de se passar nos anos 1970, é incrível como, em certos trechos, temos a impressão que o romance dialoga com a contemporaneidade, especialmente em frases como ;Faisão comunista! Uma alucinação do chanceler e dos pirados do Itamaraty!”, ;A capital está assombrando nossa república. Esse ator incrível conhece o eremita da república?;, ;depois as construtoras e o governo vão cuspir na cara dos jovens arquitetos talentosos e sonhadores;. Como você lida com isso?

Esses diálogos do passado com o Brasil de hoje não são apenas coincidências. Acho que fazem parte dos ciclos de autoritarismo no Brasil e na América Latina. O autoritarismo volta com novas feições, num contexto local mais ou menos democrático, e com diferenças em relação ao contexto internacional. Hoje, as redes sociais e a forte presença política de líderes evangélicos são relevantes e, em alguns casos, decisivas. Nos anos 1970, quando eu era free-lancer numa revista de São Paulo, escrevi uma matéria sobre um encontro da Igreja Universal do Reino de Deus, no estádio do Pacaembu. Foi uma alucinação coletiva. A memória desse encontro inspirou a figura do Rodolfo, pai do Martim

;Uso minha linguagem para criticar Brasília, nosso último delírio urbanístico-arquitetônico;, diz Ox, um dos personagens: mas nas outras áreas, qual seria nosso último delírio? E como Pontos de fuga está inserido nesse delírio?

Ox é uma personagem que critica o projeto de Brasília, mas ele não conhece os segredos, a face luminosa e obscura da cidade. Sergio San (outro personagem) considera Brasília um projeto ousado, nossa última utopia realizada, ;antes do toque militar de recolher;. São visões divergentes, debatidas no romance, mas na crítica feroz à Brasília, quem tem uma visão distorcida e delirante é o Ox. No Pontos de fuga, vários personagens estão desorientados, mas todos buscam um sentido para a vida. Martim é refém de alucinações em São Paulo e no exílio parisiense. Ele e Laísa são os mais confusos e desorientados, os mais constrangidos pelas figuras paterna e materna. Talvez, por isso, sejam tão cúmplices.

Qual a importância de ler uma ficção sobre jovens em tempos de ditadura no momento que estamos vivendo? Qual a importância da leitura, de forma geral, no Brasil de hoje?

A ficção ambientada na ditadura pode dar aos leitores uma visão crítica daquela época e, ao mesmo tempo, relacioná-la com o momento atual. Nossa democracia está mais frágil, ela se equilibra num fio fino. Se este fio for rompido, o destino do país é o precipício. E isso significa a total ruína das instituições democráticas, o caos e a barbárie. Muitos leitores do romance A noite da espera traçaram uma relação entre o passado autoritário e o presente, que parece tomar um rumo obscuro. No Pontos de fuga, essa relação aparece com mais intensidade. Quanto à importância da leitura, o que dizer de um presidente que elogia a ditadura, o livro de um torturador e o próprio algoz? De um ministro da Educação que mal sabe escrever e despreza e humilha a universidade pública? Pertenço a uma geração que tinha como ícones intelectuais Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Paulo Freire... Hoje, o ícone intelectual da extrema-direita é um charlatão expatriado, que insulta todo mundo, até generais, como se o palavrório chulo fosse uma categoria do pensamento.

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