Diversão e Arte

Alemã cria quadrinhos para falar do envolvimento da família com o nazismo

'O livro foi uma tentativa de fazer perguntas e desconstruir certas ideias que temos da nossa história', afirmou a autora

Nahima Maciel
postado em 16/12/2019 06:02
[FOTO1]Quando se mudou da Alemanha ; primeiro para Londres, depois para a Nova York ; há mais de 17 anos, a ilustradora Nora Krug se deu conta de que sabia pouquíssimo sobre as atividades de seus antepassados durante a Segunda Guerra. Ao mesmo tempo, a artista passou a observar como a identidade germânica era vista no resto do mundo: um povo que acolheu o regime nazista e consentiu na execução do maior genocídio em solo europeu no século 20. Juntando o sentimento de culpa cultivado desde a guerra na sociedade alemã com os olhares enviesados toda vez que revelava sua nacionalidade, a artista percebeu que havia aí um tema rico a ser explorado. A culpa é algo que as gerações do pós-guerra sempre carregaram, mas a forma como a sociedade alemã decidiu lidar com esse sentimento, Nora acredita, não é das mais eficientes.

Pensando nisso, ela começou a escrever e ilustrar Heimat ; Ponderações de uma alemã sobre sua terra e história, uma mistura de livro ilustrado com quadrinhos que trata com muito cuidado e bastante autocrítica o passado recente da sociedade alemã. Heimat é uma palavra difícil de traduzir. Significa casa, ou lar, não necessariamente um espaço físico e, às vezes, até uma ideia. É um termo um tanto maldito, do qual a ideologia nazista se apropriou para definir o território germânico reservado à raça ariana. Utilizá-lo como título de um livro podia causar reações ruins, mas a ilustradora quis arriscar porque enxerga na extrema direita em ascensão no país natal a mesma propensão nazista em se apropriar da ideia heimat.

No livro, Nora vai atrás da história dos tios e avós. Ela quer descobrir como eles se posicionaram diante do sistema nazista na década de 1930, quando Adolf Hitler chegou ao poder. Colaboraram? Lutaram? Resistiram? Compartilharam das ideias nazistas? Pesquisa em arquivos de sua cidade natal, Karlsruhe, levaram a artista aos avós e a um tio morto durante a guerra, aos 18 anos, depois de se alistar no exército nazista. Nora se deparou com o fato de que o avô foi um ;seguidor;, classificação estabelecida no pós-guerra para diferenciar os que aderiram ou não ao regime. Filiado ao Partido Nazista, o avô lutou na guerra, vestiu uniforme e colaborou. Nora também descobriu que o próprio tio foi doutrinado na infância antes de se tornar soldado.

Foi um percurso árduo e doloroso para a ilustradora, que não se esquivou de esmiuçá-lo em Heimat. ;Como alemã de uma geração pós-Segunda Guerra, cresci com o sentimento de culpa. Durante a adolescência, não se falava muito disso na escola, mas quando mudei para o exterior, me dei conta de que nunca havia abordado o tema de maneira mais séria;, conta.


Culpa e herança


Para Nora, essa abstração paralisa a sociedade e impede que ela possa lidar com a culpa e a herança deixadas pelo nazismo de forma mais pessoal. ;Era tudo muito abstrato, e eu precisava fazer essas perguntas para as pessoas. Mesmo que fosse dolorido, era necessário;, diz. Quando começou a escrever o livro, a artista pensou, principalmente, nos leitores norte-americanos. ;De certa forma, o livro foi uma resposta para muitos encontros que tive ao longo dos anos, alguns muito negativos, porque eu era sempre confrontada com estereótipos negativos, não só da história da Alemanha, mas da identidade alemã de hoje.;

A ascensão de movimentos de extrema direita também motivou a ilustradora a fazer o livro. A apropriação por parte desse grupo de um discurso muito similar ao utilizado nos anos 1930 para convencer os alemães de que os judeus eram uma ameaça perturbou Nora. Hoje, o alvo são os imigrantes. Mais do que nunca, ela acredita, é hora de encarar o fato de que toda a sociedade alemã corroborou, no passado, para o holocausto e que, hoje, essa disposição pode estar rondando novamente muitas sociedades europeias. E investigar como a própria família lidou com isso é, na visão da autora, crucial. Ela cita Hannah Arendt para lembrar a gravidade da situação: ;Ela disse que, se todos são culpados, então ninguém é. É muito fácil hoje, na Alemanha, ouvir dizer ;ah, todo mundo era seguidor, por que mexer nisso?;. Esse é o grupo de pessoas que mais precisam ser investigadas, porque há um vasto universo nessa ideia de seguidor: vai desde salvar alguém até cometer terríveis atrocidades. É uma categoria muito cinzenta;.

Nora Krug

Segundo Nora, há hoje na Alemanha duas categorias de pessoas. Aquelas que evitam qualquer sentimento nacionalista em relação ao país por medo de acirrar ideias que provocaram o nazismo e aquelas que defendem o direito de voltar a exaltar a cultura e a identidade germânica. E é sobre o espaço entre uma coisa e outra que as histórias pessoais do passado recente vão transitar. Em entrevista, a autora fala sobre a importância de enfrentar e compreender a história para construir o futuro.


Heimat ; Ponderações de uma alemã sobre sua terra e história
De Nora Krug. Tradução: André Czarnobai. Quadrinhos na Cia., 288 páginas. R$ 119,90.


Entrevista Nora Krug


Ao investigar sua história pessoal, de certa forma, ocê também escreveu uma história coletiva?

Sim. Acho que não podemos separar o pessoal do coletivo, o político do coletivo, o coletivo do indivíduo porque todos compartilhamos uma história. Você pode ter um ângulo pessoal nessa história, mas, ao mesmo tempo, sempre haverá algo sobre a experiência germânica coletiva. Minha esperança era de que o livro fosse universal, não somente sobre minha família, mas sobre uma questão social maior, não somente sobre a Alemanha, mas sobre qualquer país que precise enfrentar com responsabilidade o passado.


O que seria, na sua opinião, uma maneira mais construtiva de lidar com a culpa?

Vários erros foram cometidos na minha educação. Minha geração não foi encorajada a investigar seu próprio ambiente físico, o engajamento de nossas famílias, de nossas cidades, das pessoas que conhecemos. Acho que isso deveria ser encorajado por professores e por instituições porque não se pode deixar para os membros da família, deve haver uma instituição por trás. Outra coisa é que nunca falamos sobre nossos sentimentos. Quando falamos sobre história, apenas aprendemos os fatos. E os fatos, claro, não ajudam emocionalmente se não falarmos sobre o que eles fizeram conosco. Eu sei que os estudantes visitam os campos de concentração e os museus, mas é, basicamente, para fazer pesquisa. Não acho que depois de todas essas visitas nossos professores perguntem como nos sentimos. E essa é uma questão muito importante, porque depois dessas visitas, você se sente atordoado e fica sem nenhuma saída emocional para lidar com esses sentimentos. Outra coisa é que não aprendemos sobre a resistência alemã, aprendemos muito pouco, apenas sobre dois movimentos, mas a estimativa é de que 77 mil pessoas morreram porque resistiram ao regime. Acho que pode ser inspirador aprender sobre isso porque poderíamos aprender como lutar pela democracia hoje.


Quais foram suas escolhas para evitar ser mal compreendida?

Não gosto de pensar em alemães como vítimas sob o regime porque a maioria apoiou. Alguns não e esses provavelmente foram vítimas, mas eu nunca diria que os alemães foram vítimas porque eles quiseram o regime e o apoiaram até o fim. Meu maior medo com o livro foi as pessoas pensarem que eu estava relativizando as atrocidades alemãs ou fazendo os alemães parecerem vítimas. Minha meta era tentar entender como as pessoas lidaram com isso através das gerações e o que aconteceu na minha família. Ao mesmo, tempo eu sabia que escreveria um memorial e em um memorial você tem que ser honesto e escrever sobre o que sente. Não é um livro de história, escrito por um historiador, e sim um livro de um autor que queria falar da própria vida.

Quais foram as partes mais difíceis desse processo?

Eu sabia que teria que lidar com uma perda familiar, a perda da minha família durante a guerra, e isso foi o mais difícil no processo de escrever, saber como colocar o tom certo. Para mim, se tratava muito de linguagem, de escrever sobre essa perda de maneira pessoal e honesta, mas sem autopiedade nem sentimentalismos. Outra dificuldade foi parear as imagens com o texto. Nos filmes, as imagens vêm com músicas e você pode facilmente acrescentar uma emoção e pode ficar rapidamente muito sentimental, então tive que pensar muito em como equilibrar o texto e as imagens de maneira que não fosse criar um sentido de sentimentalismo.


Por que o escolheu o termo Heimat e que ele significa exatamente hoje para você?

Quando comecei a escrever o livro, meu editor alemão foi imediatamente contrário a usar heimat como título porque era muito carregado de germanismo e porque os nazistas se apropriaram da expressão de maneira errônea, como se fosse um espaço estático destinado apenas a certo tipo de pessoa. E isso é o que a extrema direita está tentando fazer novamente. Durante o período em que eu estava fazendo o livro, o cenário político da Alemanha mudou completamente e a extrema direita reemergiu. Meu editor mudou de ideia, disse que tinha mesmo que chamar de Heimat porque temos que tomar esse termo de volta da extrema direita. Eles não são os únicos que têm direito que reivindicá-la para si, todo mundo tem o direito a essa palavra e a interpretá-la da forma que quiser. É um termo muito pessoal e significa coisas diferentes para cada um, não é um termo estático, ele muda ao longo do tempo, muda ao curso da sua própria vida.


E como a extrema direita se apropriou do termo?

A extrema direita está tentando dizer que heimat só acessível a um tipo de pessoa. Chamei o livro de Heimat querendo chamar a atenção para uma reflexão sobre a Alemanha e sobre nossa responsabilidade em olhar para trás. Podemos ter sentimentos fortes em relação ao lugar de onde viemos, mas também podemos olhar para trás de uma maneira crítica e essas coisas não são contraditórias. Para mim, pessoalmente, é muito difícil definir o que é heimat. Acho que parte da razão para isso é o fato de eu viver no exterior há tanto tempo. Sou uma estranha no lugar de onde vim, então me conecto por meio de minha infância, das memórias de minha infância, porque esse é um lugar ao qual sinto que posso retornar.

Como, no caso da Alemanha, ser crítico em relação ao passado sem deixar de expressar amor ao país?

Na Alemanha, em geral, há uma divisão. Há as pessoas que dizem ;chega de culpa, precisamos avançar;, e eu diria que são minoria, mas existem. E há essas pessoas com as quais me identifico mais, que olham de maneira mais crítica para a Alemanha e para seu passado e acreditam que precisamos enfrentar o passado. O problema com essa categoria é que essas pessoas têm muita dificuldade de abraçar a Alemanha e celebrar sua cultura, e isso é que deixa um sentimento positivo para a extrema direita. Logo, isso não é bom. Os alemães que acreditam que precisamos continuar a enfrentar o passado também têm que aprender como amar o país e como expressar esse amor, porque não é saudável não ter nenhum sentimento positivo em relação ao seu país, isso pode rapidamente se tornar uma atitude de defesa, o que é perigoso.


Como os millennials lidam com isso?

Não posso falar por todos, mas outro dia fui falar na escola em que estudei na minha cidade e eles foram tão resistentes na resposta: o que eles disseram basicamente é que não querem se sentir culpados, mas querem se sentir responsáveis. Querem ter certeza de que não vai acontecer novamente. E não querem se sentir culpados, porque não foram eles que cometeram as atrocidades. Acho que é uma das maneiras mais saudáveis de seguir em frente, porque a culpa com a qual cresci não é saudável. Acho que precisamos continuar a aprender sobre o holocausto, mas precisamos encontrar uma maneira mais construtiva de lidar com a história e não uma maneira que nos paralise. Espero que as novas gerações façam isso. Mas há sempre o perigo de que, quanto mais nos afastamos da geração que passou por isso, mais fica fácil esquecer o que aconteceu.


Com toda essa ascensão dos movimentos neonazistas e da extrema direita, o quão importante se tornou falar disso?

Acho que toda situação política deve ser analisada de maneira única e individual, seria muito precipitado dizer que as coisas vão ser como foram no passado, porque se fizermos isso não estaremos olhando com cuidado para o que está acontecendo agora. Mas há muitas coisas remanescentes do que aconteceu no período nazista e antes dele e é muito perturbador observar e viver isso. É muito importante agora não só falar sobre o que aconteceu, mas sobre como continuar a compreender as coisas de maneira nova. Além da mudança política pela qual estamos passando, temos uma mudança de geração. Pela primeira vez estamos perdendo o elo com as testemunhas do que aconteceu e esse é um momento crucial, temos que encontrar meios de manter essas histórias vivas. Precisamos ensinar às novas gerações e, infelizmente, esse está tornando, novamente, um tópico relevante em muitos países.

Acha que o fato de o livro ser ilustrado facilita a comunicação com o leitor e o torna mais didático? Era sua intenção fazer algo didático?

Eu não queria ter um tom didático, porque o objetivo não era responder perguntas ou definir o que é heimat, ou culpar alguém da minha família, ou perdoá-lo. Eu queria encontrar respostas claras. O livro foi uma tentativa de fazer perguntas e desconstruir certas ideias que temos da nossa história.

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