Diversão e Arte

Manifesto pelo diálogo

Obras da artista gaúcha Élle de Bernardini levam para a galeria reflexões sobre gênero e sobre a presença trans nas artes visuais

Correio Braziliense
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postado em 17/12/2019 04:18
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Élle de Bernardini estudava filosofia na Universidade Federal de Santa Maria quando se deu conta de que o curso era muito ortodoxo. Começou então a pesquisar filósofos contemporâneos que não estavam nas ementas dos cursos e chegou no espanhol Paul Preciado, professor de história política do corpo e teoria de gênero da Universidade Paris VIII (Sorbonne) e autor do Manifesto contrassexual, referência nos estudos de gênero contemporâneos. Élle mergulhou na teoria do filósofo e voltou de lá com a exposição Corpo expandido, em cartaz na Karla Osório galeria.

O material de trabalho da artista é, basicamente, uma reflexão sobre a sociedade contemporânea, que ela aponta como branca e hétero normativa. Preciado, ela explica, propõe uma transformação social que reorganiza a ideia de gênero e se concentra nas potencialidades individuais. ;Numa sociedade futura, que o transfeminismo, que é a 6; onda do feminismo, propõe, haveria um modelo diferente de sociedade que daria conta de todas essas questões envolvidas. E o Paul cria esse modelo novo no Manifesto contrassexual. Esse termo contrassexual é contra a ideia de gênero, de feminino e masculino. Para essa teoria, o que existe é uma definição genérica chamada corpos falantes;, explica Élle.

Pensando nessa equação, ela criou uma série de 15 objetos inspirados na ideia de corpos falantes. Construídas, basicamente, com couro sintético, uma metáfora para a pele humana, as obras convidam o público a uma experiência táctil e foram idealizadas para serem tocadas e manipuladas. São o que Élle chama de formas contrassexuais, uma reprodução particular de cinco zonas erógenas do corpo humano idealizadas com base em um código gráfico que se mistura e se repete de acordo com a intenção da artista. ;Essas formas nada mais são do que as misturas das zonas erógenas do corpo: pênis, vagina, escroto, ânus e seio. A ideia é justamente desconstruir essa noção de geografia corporal;, avisa a artista. ;A partir desse modelo, comecei a criar obras que deem conta de explicar, por meio de uma experiência artística sensorial, como seria essa nova sociedade e essa nova noção de corpo e de ser humano.;



Élle explica que o trabalho pretende pensar um novo modelo de sociedade na qual os corpos seriam mais livres para exercer suas criatividades. E ela procura fazer isso de forma bastante lúdica e didática ao propor objetos coloridos e atraentes que podem ser manuseados e tocados. ;Essas questões de gênero e sexualidade são muito delicadas, as pessoas não reagem muito bem, então, no meu trabalho, sempre procuro ser suave no tratamento do tema, nunca sou explícita, porque minha intenção é atrair as pessoas para a discussão que tem por trás dos trabalhos;, avisa.

Aos 28 anos, a artista faz parte de um fenômeno recente no mercado de arte brasileira, que enxergou um nicho na produção de artistas trans que tratem da temática de gênero. Galerias, museus, feiras, bienais e instituições passaram a incluí-los nos acervos e em exposições. Élle fez parte, este ano, da mostra Histórias feministas, no Masp, e acredita ser uma das poucas com representação em galerias no Rio de Janeiro (Luciana Caravello Galeria), São Paulo (Verve) e Brasília (Karla Osório).

A performance é um dos suportes que Élle explora para falar do tema. Uma foto da série Imperatriz, registro de performance realizada pela artista, faz parte do acervo do Museu Nacional da República, no qual ela realizou, em novembro, a performance Dance with me.

Imperatriz consiste em uma série de performances nas quais Élle desfila vestida de soberana por locais de poder, dos palácios governamentais às instituições de arte. Em Dance with me, na qual se lambuza de mel e folhas de ouro, a intenção está mais voltada para o significado político do corpo. Élle parte do jargão popular ;não te aceito nem coberta de ouro; para falar de ódio, intolerância e preconceito. ;Como nossos corpos trans e travestis são considerados pela sociedade como marginais e que transmitem doenças, cubro meu corpo com ouro para questionar: e agora me aceitam?;, explica a artista, que é formada em balé clássico pelo Royal Ballet de Londres.


Corpo expandido
Exposição de Élle de Bernardini. Visitação até 15 de fevereiro, de segunda a sexta, das 9h às 18h30, e sábado, das 10h às 14h, na Galeria Karla Osório (SMDB Conjunto 31 Lote 1B - Lago Sul)



Três perguntas / Élle Bernardini



Qual a importância de trabalhar as questões que você trouxe nessa série no momento atual vivido pela sociedade brasileira?
Vejo essa questão por dois pontos. Embora estejamos vivendo um período politicamente controverso em que estão ocorrendo muitos retrocessos na questão dos direitos civis, a gente teve muitos avanços na questão de gênero e de sexualidade, porque essas temáticas não eram nem abordadas há cinco anos. Não tinha artistas trans em galerias, e tinha uma coisa muito grave: éramos considerados doentes pela medicina. No CID, era uma doença mental, um distúrbio mental, e a cura era a cirurgia de redesignação sexual. Em maio deste ano, a CID nos retirou do manual como pessoas doentes. Deixamos de ser doentes este ano. Ao mesmo tempo que tem retrocesso no sentido político, também temos um avanço na discussão porque nunca antes na história da humanidade se falou tanto nisso quanto agora.


Por que a inserção de pessoas trans só aconteceu nos últimos cinco anos?
Começou, de fato, há dois anos com a exposição Histórias da sexualidade, no Masp. Foi primeira vez que artistas trans expuseram no Masp. A partir dali, houve uma abertura. E como essas questões se tornaram muito urgentes nas pautas dos jornais, o mercado de arte viu brechas e acabou agregando esses artistas para a galeria, porque começaram a ter saída no mercado. São pesquisas novas, que não existiam antes.


E essa pesquisa, como ela está inserida no seu trabalho?
Não trabalho só com esse tipo de pesquisa, meu trabalho abrange também outros elementos. Já fiz trabalho sobre a ditadura militar. Faço também trabalhos que têm a ver com a história da humanidade. Eu não caio no monotema. Não é meu caso. Mas, no momento, a questão da transexualidade tem sido mais importante no meu trabalho em função de questões sociais, porque o Brasil é o país que mais mata travestis e trans no mundo, sendo que o México, o segundo, mata quatro vezes menos. E a expectativa de vida de um trans no Brasil é de 35 anos. Nós vivemos menos. Então existe uma demanda grande em falar da questão de gênero e sexualidade em função da nossa própria existência. Marcar que existimos para que não sejamos mortas. Ao longo da história, como a gente não tinha oportunidade de emprego porque éramos vistos como estranhas, a grande maioria ia para a prostituição. Então é importante me firmar como artista trans dentro do sistema legítimo de arte para mostrar para as outras artistas trans que sim, nós podemos.


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