Nahima Maciel
postado em 18/12/2019 09:47
[FOTO1]Seis meses de muita conversa e alguma perplexidade com o momento político do Brasil conduziram Valéria Pena Costa e Rafael da Escóssia para o misto de performance e instalação de Natureza morta, exposição em cartaz na Galeria de Bolso da Casa da Cultura da América Latina (CAL). ;Esse trabalho passa bastante por uma questão política;, avisa Valéria.
Foi durante as queimadas na Amazônia que os dois artistas começaram a ter a ideia de falar de um momento contemporâneo por meio de um gênero que atravessa toda a história da arte. Em Saudades eternas, Valéria confere a uma coroa de flores usada em funerais, simbologia ancorada na representação da morte, mas vai além. Sobre o arranjo, a artista colocou frutas frescas cujo processo de apodrecimento é, também, uma narrativa para o trabalho. ;A coroa fúnebre fala muito sobre a morte, a decomposição, os riscos;, avisa a artista. ;Os trabalhos estão diretamente ligados à questão política e se relacionam com a apreensão, os medos, os desmanches, na área cultural, inclusive.;
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Rafael da Escóssia começou a idealizar a exposição a partir do cenário político e social brasileiro dos últimos dois anos. Dentro de uma caixa de vidro, ele colocou um exemplar da Constituição Federal de 1988 com maçãs, bananas, pão e leite. A ideia era deixar os materiais se misturarem e apodrecerem em processo simbólico cujo propósito tem a ver com os questionamentos do artista diante do mundo contemporâneo. ;Nossa pesquisa foi para um lado bem político, crítico e, ao mesmo tempo, performático;, avisa o artista. ;Entendo esse objeto como uma pintura, com todas as implicações políticas disso.;
A Constituição submetida à decomposição criou uma ponte entre os trabalhos dos dois artistas. Boa parte da pesquisa de Valéria está voltada para a natureza morta, ou o still life, termo em inglês cuja tradução literal significa ;ainda vivo;. A artista submete os materiais à decomposição com a intenção de fazê-los mudar de forma, e não de destruí-los.
Aquele espaço, que também é pictórico, de certa forma, passa a ser um nicho de proliferação de formas de vida diversas da original. O mesmo raciocínio vale para o trabalho de Rafael da Escóssia. ;Pensamos nessa literalidade do termo natureza morta, brincamos com as possibilidades semânticas do termo, contextualizando para um cenário mais político, discutindo mesmo a questão ambiental e os impactos disso para viver na Terra;, diz o artista.
As primeiras discussões entre ele e Valéria para a criação de um trabalho conjunto ocorreram quando começaram as queimadas na Amazônia. Era o período de seca no cerrado, o que propiciava um paralelo, e a maneira de o governo lidar com a questão ambiental pautou as reflexões no mundo inteiro. Por isso, há um sentido especial na performance realizada pela dupla de artistas ontem, durante a abertura da exposição.
Com carvão, Valéria e Rafael pintaram as paredes da galeria. Elemento escultórico, feito em madeira extraída de florestas, o carvão se transformou em tinta. ;É como se a gente pintasse as paredes de luto;, avisa Rafael. ;O que despertou nosso interesse foi o lance das queimadas na Amazônia, que este ano aumentaram bastante, e essas questões climáticas cada vez mais alarmantes, essa ideia de que a vida na Terra está em risco, por conta dessas políticas neoliberais exploratórias. A gente tenta fazer uma crítica por meio do carvão, que sai de uma forma escultórica e passa a ser tinta.;
Essa ideia de luto também está associada ao cenário político do país, por isso a Constituição em estado de putrefação. ;E associamos isso à morte da própria Constituição e às políticas hiperexploratórias que vêm destruindo as conquistas democráticas. O trabalho traz um pouco dessa nossa compreensão de que é uma política com várias manobras antidemocráticas. A letra da lei já era uma letra da lei muito no devir, com direitos que ainda seriam construídos, como a educação, o lazer, o transporte, a moradia, sempre na perspectiva de algo que ainda aconteceria;, avalia Rafael, que também é formado em direito e tem as questões normativas como linha de pesquisa para tratar da relação do corpo com as normas e a sociedade. ;Normas que são, muitas vezes, excludentes, dificultam o acesso da população aos direitos e acabam atuando em benefício de certos grupos e em detrimento de outros;, explica o artista, cujos trabalhos têm sempre um viés político. ;Não há como não ser político, a existência é política, é só uma questão de assumir um posicionamento;, acredita.
Serviço
CAL (SCS, Q. 4). Natureza morta, de Valéria Pena Costa e Rafael da Escóssia. Visitação até 21 de fevereiro de 2020, de segunda a sexta, das 9h às 19h, e sábado e domingo, das 8h às 18h, com agendamento prévio.