Correio Braziliense
postado em 04/01/2020 06:01
A encantadora novela O pequeno herói (1857), de Dostoiévski, nos conta a história de um menino de 11 anos numa casa para onde fora levado, nos arredores de Moscou. Sozinho, anda por toda a casa observando os convidados do rico proprietário que chegam para uma festa de aniversário, cujas comemorações duram cinco dias. Conhece a linda jovem senhora de cabelos louros que o maltrata e se diverte à sua custa.
Depois, percebe-se enamorado de Madame M..., melhor amiga dela, e descobre a grande bondade em seu coração, bem como o sofrimento que ela parece ocultar. Após sofrer perseguição e bulllying da linda loura, a ponto de ser exposto à vergonha pública na festa, o pequeno de 11 anos reage e mostra sua indignação contra a malvada.
No dia seguinte, como aceita o desafio de sua perseguidora, que tinha o prazer de ridicularizá-lo, ele monta num cavalo bravo, que ninguém dominava, e, para espanto de todos, consegue cavalgá-lo sem cair. Aí, torna-se um pequeno herói, levando a “inimiga” às lágrimas de emoção, ficando sua amiga.
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Este entregou-lhe uma carta, deu-lhe um beijo, possivelmente de adeus, e partiu. Ao voltar para a casa, Madame M... estava tão transtornada que não percebeu que a carta caíra. O menino pega a carta e a leva consigo, esperando a melhor ocasião para entregá-la, o que só acontecerá quando a jovem senhora sua amada, quase em desespero, convida-o a passear, justamente no bosque onde estivera e perdera a carta. Desse modo, o menino encontra um modo encantador de devolvê-la: coloca-a no buquê de flores que oferece a ela.
Reflexão de adulto
Não precisa dizer que ele a salvou de algum grande embaraço e agiu com nobreza de caráter. Mas é preciso dizer que, no instante em que fingia dormir na relva, e recebeu beijos de agradecimento, ele sentiu que seu corpo mudava, que algo novo surgia. Somente mais tarde, na reflexão de adulto, pôde compreender que naquele momento o menino que havia habitado o seu corpo dava lugar ao homem que acabara de nascer.
Para o biógrafo Joseph Frank, essa novela, último trabalho escrito por Dostoiévski antes de sair da mal-afamada Fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo, e seguir para a Sibéria, onde cumpriria pena de 10 anos, fala muito do que estava acontecendo com o autor. E Frank estabelece um paralelo entre a ação do menino ingênuo, sonhador enamorado, com a ação de Dostoiévski ante a seus inquisidores. Ou seja, assim como o menino, Dostoiévski calou-se, nada disse que pudesse prejudicar os seus amigos e a causa em que acreditavam.
Profundezas da alma
Portou-se como um pequeno grande herói silenciando-se, assumindo corajosamente os seus atos. E, como o menino, cresceu como ser humano, tornando-se o grande conhecedor das profundezas da alma humana. Diz Frank: “Acaso não estaria vendo a si próprio exatamente nesses termos naquele momento?” E escreveu Dostoiévski:
Quando parti para a Sibéria, levei comigo pelo menos o consolo de ter me comportado com honra na investigação, sem atribuir minha culpa a outros, e até mesmo sacrificando meus próprios interesses se visse a possibilidade de proteger os outros de apuros em meu depoimento. Mas me mantive sob controle. Não confessei tudo, e por isso fui punido com mais severidade.
Mas, indo além da correta e perspicaz análise desse grande biógrafo, gostaríamos de cruzar dois temas dessa história: o do crescimento emocional e sexual do menino com a história social e política da Rússia. Como observou Frank, essa é uma história de Dostoiévski que se passa numa grande propriedade de um rico latifundiário, coisa rara na sua obra, tema, de resto, da literatura de Tolstoi e Turguêniev. Por isso, chamou-nos a atenção o fato de Dostoiévski ambientar a sua novela — escrita na prisão — numa grande propriedade de nobres russos. (E só publicá-la oito anos depois, e anonimamente, nos Anais da Pátria, nesse período conhecido como “a era do terror e censura”, em que a literatura russa estava totalmente amordaçada.)
Parece-nos que essa propriedade vem a ser uma metáfora da Rússia, pois enquanto a aristocracia, que nada faz, ou melhor, cultiva o “dolce far niente”, com festas despreocupadas e animadas, “Divertimentos de toda espécie sucediam-se sem cessar, sem que se pudesse prever o último da série. (...) Dançava-se, tocava-se e cantava-se.”, ali ao lado, no limite do jardim, estão os trabalhadores ceifando o campo com suas foices brilhando ao Sol. (“Reparei como, a cada movimento dos ceifeiros, rebrilhavam ao Sol grandes foices aguçadas, logo desaparecendo como cobras reluzentes que tornassem a enfiar-se pela terra, (...)”.); e, mais uma vez, como observa o menino, eles deixam seu rastro com as faixas do feno ceifado nos limites da propriedade.
Presença sutil
Assim, temos duas realidades contíguas que, no entanto, não se tocam, dois mundos separados metaforicamente pelo rio e pela cerca do jardim — na verdade, dois mundos intransponíveis naquele tempo, na década de 1850, na Rússia de Nicolau I e Alexandre II. Os trabalhadores sequer aparecem na história, mostrados apenas nas suas foices que falam metonimicamente por eles. É muito sutil a presença dessas foices num lindo dia de Sol em que todos os hóspedes grã-finos saem a passeio para fazer um piquenique. Só o menino vê as duas ações. É um rico detalhe.
Dostoiévski, mesmo na visão romântica do menino, parece tomar consciência da realidade de seu país separado por um fosso socialmente, como o rio que separa a propriedade. Se o menino guardou o segredo da mulher, seu primeiro e platônico amor, para protegê-la, Dostoiévski calou-se para proteger os amigos com quem partilhara ideias e opiniões políticas consideradas subversivas; naquele instante em que o menino viu as transformações em seu corpo, viu também duas Rússias, que futuramente iriam se digladiar num acerto de contas histórico, milenar.
E a conta da festa que parecia sem fim chegou 60 anos depois para o também festeiro e bom dançarino, o fraco Nicolau II. Em 1917.
Vera Lúcia Oliveira é professora de literatura
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