Diversão e Arte

Ruy Castro, em novo livro, redesenha um Rio de Janeiro esquecido

Em novo livro, Ruy Castro faz perfil da capital fluminense nos anos 1920 e traz à tona uma metrópole que se tornou moderna anos antes do resto do país

 

Depois de mergulhar na história do samba-canção em A noite do meu bem, agora Ruy Castro se voltou para um período pouquíssimo explorado da história do Rio de Janeiro. Os anos 1920 e a vida cultural na capital fluminense da época ganharam um retrato saboroso em Metrópole à beira-mar — O Rio moderno dos anos 20, produção mais recente do escritor e jornalista. Foi, Castro admite, um de seus projetos mais difíceis. Sem ter personagens vivos da época aos quais recorrer para entrevistas, ele mergulhou em leituras e muita pesquisa. Foram quatro anos percorrendo, sobretudo, a imprensa, os romances e as crônicas escritas por personagens que, fora alguns, como João do Rio, caíram no esquecimento. As 22 páginas da bibliografia de Metrópole à beira-mar deixam claro o percurso de Castro. 

 

“Foi muito mais difícil de fazer do que as biografias, porque não pude contar com as entrevistas. Então, além de mergulhar na imprensa dos anos 1920, tive de ler a literatura da época”, conta. São romances, poesias, livros de memórias de diplomatas, de escritores, de políticos, de jornalistas e de atores que serviram de fonte e estão, na maioria, esgotados. “São livros específicos sobre a iluminação no Rio, os transportes no Rio, a saúde no Rio e assim por diante. A bibliografia é enorme e nenhum dos quase 1000 livros lidos ou consultados era exatamente sobre ‘o Rio dos anos 20’. Porque ainda não havia um livro a esse respeito”, avisa o autor que, no percurso, descobriu até um filho brasileiro da lendária atriz francesa Mistinguett ao qual praticamente nenhum jornalista brasileiro deu atenção. 

 

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O que havia era uma quantidade enorme de personagens fascinantes que faziam do Rio de Janeiro uma cidade, em muitos aspectos, à frente de seu tempo se comparada aos outros centros urbanos do Brasil de então. Na literatura, nas artes plásticas, na música, no teatro e na imprensa, que crescia com rapidez e vigor, a capital experimentava um modernismo que nada tinha a ver com manifestos e movimentos. “Não acho o modernismo um ‘estilo de vida’. Em São Paulo, que era uma cidade acanhada, talvez fosse. Mas, no Rio, a modernização vinha naturalmente com a própria dinâmica da cidade. O Rio era um tsunami, tudo estava acontecendo ao mesmo tempo e em todos os setores, não apenas na arte”, diz Castro. 

 

Pelo livro desfilam figuras como os escritores e jornalistas Théo Filho, Benjamim Costallat e Álvaro Moreyra, cronistas de uma cidade pra lá de avançada, que se descobria moderna e liberal. “Théo-Filho e muitos outros escritores dos anos 1920 foram esquecidos porque, a partir dos anos 1960, para a maior parte das pessoas no Brasil, só existiram o Mario de Andrade e o Oswald de Andrade...”, repara o autor. Ele traz também para o protagonismo mulheres como Elsie Houston, Vera Janacópulos, Albertina Bertha, Eugênia Alvaro Moreyra, Zaíra de Oliveira, Chrysantème e Carmen Dolores, poetas, cantoras e escritoras capazes de incendiar o Rio de Janeiro com ideias feministas inimagináveis no resto do Brasil de então. “Naquela época, quando eram 11 horas da noite no Rio, ainda era 1904 no resto do Brasil…”, compara Ruy Castro.

 

 

Metrópole à beira-mar – O rio moderno dos anos 20

De Ruy Castro. Companhia das Letras,496 páginas. R$ 79,90

 

 

Entrevista // Ruy Castro

 

Se fala mais no Rio da Belle Époque e do período de Getúlio pra frente do que desse início de século. Por que você escolheu esse período e quais foram as dificuldades em relação a A noite do meu bem?

 

De fato, os historiadores se concentram muito no período da, digamos, Belle Époque — que, para mim, acabou no começo da Primeira Guerra, em 1914 —, e depois pulam direto para os anos 1930 e para o Getulio. Nunca entendi esse desinteresse pelos anos 1920, que foi uma época de extraordinária efervescência. Mas que bom que eles fizeram isso — porque deixaram para mim o privilégio de mergulhar naquela época. Quanto à diferença entre Metrópole à beira-mar e todos os livros anteriores é que, desta vez, não havia ninguém vivo que eu pudesse entrevistar. Daí, tive de mergulhar nos documentos, nos livros da época e na colossal imprensa que se publicava no Rio nos anos 1920 — dezenas de jornais diários e revistas semanais. Li tudo durante quatro anos e com enorme prazer.

 

Há alguns personagens bastantes conhecidos, mas acho que o mais interessante do livro é a recuperação de figuras das quais pouco ouvimos falar hoje, como Théo Filho, Benjamim Costallat e Álvaro Moreyra. Por que eles ficaram esquecidos e como eles foram importantes para a pesquisa? 

 

Pois é, como se pode ignorar escritores tão interessantes? Os primeiros romances de Théo-Filho nunca deveriam ter saído de circulação. Os de Benjamim Costallat, nem tanto, mas ele foi importantíssimo como editor. E o cronista Álvaro Moreyra era insuperável — um pré-Rubem Braga, com um estilo todo próprio. E, como eles, outros também foram deixados de lado no século 20. É aquele velho hábito brasileiro, de, a cada 15 anos, esquecer o que aconteceu nos 15 anos anteriores, como dizia o Ivan Lessa — outro que também será esquecido. Toda a minha obra, se você reparar bem, é uma luta contra esse esquecimento.

 

Uma grande surpresa do livro são as mulheres. De novo, algumas são mais conhecidas, mas outras, como Elsie Houston, Vera Janacópulos, Albertina Bertha, Eugênia Alvaro Moreyra, Zaíra de Oliveira, Chrysantème e a própria Carmen Dolores são verdadeiras descobertas. O Rio dos anos 1920 já era feminista? Esses nomes já orbitavam em torno das tuas pesquisas?

 

Algumas, eu já conhecia vagamente, como Elsie Houston, Chrysanthéme e Carmen Dolores. Sobre Eugenia Álvaro Moreyra sempre tive enorme curiosidade, inclusive por ser amigo de uma neta dela, a querida e já falecida Sandra Moreyra. Mas Vera Janacópulos, Zaíra de Oliveira e Albertina Bertha foram descobertas até para mim. O Rio era bastante feminista, sim, tanto que havia vários movimentos de mulheres. A literatura feminina da época era muito atuante nesse sentido.

 

Você optou por não se aprofundar na comparação do modernismo carioca com o paulista, embora os personagens da São Paulo de 22 (e a própria semana) estejam todos lá. Por quê?

 

Porque não há comparação possível. É como eu disse, o Rio era um tsunami. Só a Exposição do Centenário da Independência, também em 1922, correspondeu a umas dez Semanas de Arte Moderna. E, sem a participação do Di Cavalcanti, do Ronald de Carvalho, do Manuel Bandeira, do Villa-Lobos e de outros, todos cariocas, também não teria havido a Semana de Arte Moderna.

 

Em quê, essencialmente, os modernos cariocas eram diferentes dos modernos paulistas?

 

Os cariocas eram modernos, não eram modernistas. Nunca ocorreria a eles criar um “movimento”, com manifesto etc., uns elogiando os outros, como numa ação entre amigos. Os escritores cariocas tinham também outras preocupações, inclusive sociais, mais importantes do que destruir o soneto e a colocação de pronomes. Homens como João do Rio, Benjamim Costallat e Théo-Filho subiam os morros, descreviam a pobreza; as escritoras lutavam pela emancipação da mulher. Por que iriam perder tempo com o soneto, que, aliás, já tinha sido morto pelos simbolistas? 

 

As drogas no Rio da época são um capítulo praticamente à parte no livro. É impressionante a naturalidade com que o assunto era tratado: éter no champanhe, fumeries frequentadas pela boemia, morfina das ampolas Bayer e o título do livro de Álvaro Moreyra, Cocaína. Olhando para o Rio e o Brasil de hoje, de onde veio o conservadorismo com uma cidade tão livre de moralismos?

 

A droga na época era diferente. Era um “vício social”, “elegante” — não uma indústria do tráfico como hoje, e nem se conheciam amplamente os seus efeitos negativos. Havia uma visão romântica sobre o seu uso. O que não impedia que já houvesse pessoas destruídas por ela. Já desde o começo dos anos 20 elas tiveram a venda proibida para pessoas comuns e só podiam ser comercializadas para fins médicos, mas os farmacêuticos as vendiam do mesmo jeito para qualquer um, por baixo do balcão, e havia também os traficantes. Mas, sem dúvida, havia grande tolerância social a elas.

 

O filho “brasileiro” de Mistinguett foi uma revelação para você? Por que quase ninguém falou disso na época?

 

Não é que quase ninguém falou — ninguém falou! Nossos repórteres não tiveram a curiosidade de ir atrás... Só descobri isso lendo biografias francesas da Mistinguett.