Diversão e Arte

João Silvério Trevisan lança o livro 'A idade de ouro do Brasil'

Em romance idealizado nos anos 1980 como um roteiro de cinema, João Silvério Trevisan fala de um Brasil que nunca muda

Correio Braziliense
postado em 08/01/2020 09:11

 

João Silvério Trevisan escreveu A idade de ouro do Brasil para Marco Nanini, em 1987. Originalmente, o texto tinha forma de roteiro de cinema e a ideia era transformá-lo em filme. Nanini viveria Abelha Rainha, a travesti que conduz um grupo de amigas a um showzinho particular contratado por um político que quer fazer surpresa aos correligionários após reunião para criação de um novo partido. “Mas nunca consegui filmar, apesar das muitas tentativas. Aliás, tenho vários roteiros não filmados, em geral pelos mesmos motivos: são muito transgressivos”, conta. Tudo é transgressivo em A idade de ouro do Brasil, que foi revisado durante o ano passado e transformado em romance porque Trevisan achou o texto muito atual. Pouca coisa foi modificada, o tempo foi deslocado para o governo Lula e essa é uma das curiosidades do livro. A história pensada em 1987 se encaixa perfeitamente nos dias de hoje e no passado recente. Durante a reunião para a formação do novo partido, o político recebe correligionários entre os quais há um capitão e um evangélico. O momento é o auge da era Lula e o esquema do político envolve corrupção, apoio da ala religiosa do Congresso, doleiros e caixa 2. "Mudei detalhes do roteiro de 1987 para o romance, mas toda a estrutura, todo o enredo é exatamente o mesmo", avisa Trevisan. "O romance tinha tudo a ver com o que estava acontecendo. Eu estava muito perturbado e preocupado. Fiz modificações a partir das eleições do ano passado, mas o perturbador é que dá a impressão de que, no Brasil, nada muda, vivemos num processo de eterno retorno. Um roteiro de 1987 metia os dedos nas feridas e a história continua valendo para 2019".

No livro, as cinco travestis contratadas preparam um show que culminaria na interação pessoal de cada uma com os políticos, mas todo o planejado desanda e o leitor é surpreendido com uma reviravolta muito mais digna do que o cenário que se anunciava. Para Trevisan, que tem 75 anos, cada um dos personagens tem um elo com a realidade. “Para cada personagem de político do livro tenho uma referência na vida real nos dias de hoje, assim como cada travesti tem uma referência de travestis que conheci ou conheço”, avisa o autor, que vê em A idade de ouro do Brasil o encerramento de trilogia sobre o país iniciada com Ana em Veneza (1994) e Rei do cheiro (2009). Em entrevista, Trevisan conta como encara o Brasil de hoje e por que o livro parece tão atual, apesar de sua estrutura ter mais de três décadas.


A idade de ouro do Brasil
De João Silvério Trevisan. Alfaguara, 212 páginas. R$ 54,90


Entrevista // João Silvério Trevisan


Que modificações o senhor fez no romance em relação ao texto original?
Com a ascensão do novo presidente, cujo nome não gosto de pronunciar porque me faz mal, ponderei com meu editor rever todo o romance porque, em 2016, não havia hipótese de vivermos o que vivemos no ano passado. Fiquei três meses tentando inserir um personagem que apontasse para o que  aconteceria em 2018, mas não consegui porque, se inserisse, o romance desandaria. Então, o que fiz foi colocar o capitão no romance, mas ele se retira. É tão forte a sensação de perplexidade que esse personagem sequer entrou no meu romance com a facilidade que os outros políticos estão presentes. Estamos no auge do governo Lula, a suposta idade de ouro, mas com imenso caudal de ironia. Acho que fica bem claro que há um montante de ironia nesse título.


Você está perplexo?
Na verdade, é um romance de perplexidade com relação à história do Brasil e à história recente desse país. Quando falo em eterno retorno na história brasileira em função de uma narrativa de 1987 caber como uma luva nos dias de hoje é porque estamos num círculo vicioso e espero deixar isso bem claro no último capítulo, em que há um olhar atemporal, de eternidade sobre o Brasil.


Você diz que esse romance encerra uma trilogia sobre o país. Por que escrever sobre o Brasil nas últimas três décadas?
O que me importa é essa reflexão sobre o Brasil. Eu sofro muito o Brasil, sempre sofri o Brasil, mas não metaforicamente, ao pé da letra. Como escritor, sempre fui um cara desempregado. Acho engraçado quando leio estatística de emprego caindo ou aumentando. Para mim, sempre foi a mesma coisa, sempre estive num patamar de brigar muito para sobreviver. Além disso, tenho a circunstância de ser homossexual e sei o que é sofrer no Brasil.


Melhorou nas últimas décadas?
Acho que as coisas têm mudado sim, não posso negar isso. E também não posso negar uma imensa desconfiança sobre essas evoluções. Porque, como estamos vendo agora, o retrocesso é muito fácil e rápido. Agora, mesmo uma figura como esse presidente, que pensa que, com seu autoritarismo doentio pode transformar o Brasil no seu espelho, há uma coisa que essa gente autoritária não conta: temos mais de 200 milhões de habitantes e uma grande parcela, não facilmente calculável, é de LGBT. Essas pessoas no poder não se dão conta de que a comunidade LGBT nesse período todo teve uma grande evolução. Eu, que já vivi décadas, nunca tinha visto a comunidade LGBT tão consciente de seus direitos, tão politizada. Isso me impressiona profundamente e positivamente. Quando vou a uma parada, e não perco nenhuma, a sensação que tenho é de extrema alegria porque consigo ver essa evolução. A comunidade LGBT conquistou sua voz e está cada vez mais consciente que é dona do seu destino antes de qualquer disposição política ou judicial.


As travestis do livro representam uma resistência?
Aquelas travestis são profetisas que estão tirando as máscaras daqueles políticos. A função do profeta bíblico é desvendar o presente e, se tivermos esse olhar profético, vamos ver que muita coisa está acontecendo rapidamente. Se há um desmonte provocado por esse governo em vários setores sociais e mais necessitados, também está havendo um desmonte de seus próprios projetos e utopias. O que se está propondo nesse governo é o projeto venezuelano, que é o oposto de tudo que eles gostariam. Esses momentos de crise são altamente criativos. Sou um depressivo crônico, luto muito para manter viva minha esperança e uso de todos os recursos que posso, de terapias a leituras. E tenho aqui na parede uma frase de Joseph Campbell que diz: “O herói é aquele que transforma sua consciência através das provas que sofre, pois são as provas que lhe trazem as revelações”.


Quem é seu leitor hoje?
Não sei dizer. Poderia dizer é a comunidade LGBT. Acho que a partir do Pai, começou a acontecer uma coisa interessante para mim: enquanto escritor comecei a acolher um público que antes não sabia da minha existência. E quando publiquei a quarta edição de Devassos no paraíso, comecei a receber um público LGBT jovem. São as gerações mais novas que estão consumindo avidamente um livro como Devassos. Então, por um lado, tem as novas gerações LGBT e, por outro, pessoas que não tenho a menor ideia de quem são.

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