Correio Braziliense
postado em 11/01/2020 06:20
O nutrólogo Josué de Castro, o poeta João Cabral de Melo Neto e o compositor/cantor Chico Science entram em conexão no ensaio Mangue-mundo, de Francisco K (Ed. Sigla). A obra pretende marcar no tempo presente a relação entre os três pernambucanos, mortos no século passado. Em comum, traçam, primeiro, a temática do mangue, na capital pernambucana. Um olhar mais aprofundado sobre Josué e Chico traz à tona a presença do conceito de caos ou desordem para descrever o mangue e a cidade. Outro ponto marcante foram os 100 anos de João Cabral. “O livro não foi pensado, inicialmente, para o centenário, mas surgiu da transformação de um projeto de artigo sobre as relações entre os três criadores para a passagem dos 20 anos da morte de Science, em fevereiro de 2017. Escrever é repensar, ampliar o já pensado e se abrir para novas percepções”, comenta Francisco K.
Por isso, o primeiro capítulo revê um aspecto menos destacado da obra de Josué, célebre por Geografia da fome. Trata-se do romance Homens e caranguejos, no qual um garoto vive em meio à miséria da lama dos manguezais. Foi o médico quem inspirou a poética do mangue de Chico Science. Bastaram dois anos de carreira — ele morreu em 1997, às vésperas de completar 31 anos — para o cantor e compositor levar Pernambuco de volta à grande cena musical do país.
“As diferenças entre esses artistas e de um pensador que incorreu no campo da ficção, como Josué, são também fundamentais para entender a riqueza das diversas poéticas do mangue. O que não deixo de frisar, de qualquer modo, é que a ideia mesma de uma poética do mangue só se tornou pensável após as criações de Chico Science, possibilitando um olhar retrospectivo que revela novas facetas desses ilustres conterrâneos que o antecederam”, ressalta o poeta.
É o beat
O manguebeat, surgido em Recife na década de 1990, é a fusão de tecnologia e cultura popular, numa mistura de maracatu rural, rock e hip-hop. O símbolo dessa cena cultural passa a ser o caranguejo, típico da lama dos manguezais — bioma que se estende pela costa brasileira com vegetação em um solo lodoso e salgado. “Os mangueboys e manguegirls podem ser entendidos como uma metamorfose dos homens-caranguejos, mas são também uma categoria socialmente mais indefinida dos seguidores do movimento mangue”, analisa.
O movimento mangue é personificado, expresso visualmente na imagem de uma antena parabólica fincada na lama. Com Chico Science e Nação Zumbi — expoentes dessa vertente —, o desenho se evidencia. “No disco Afrociberdelia (1996), temos uma radicalização da presença da tecnologia e um esboço de projeto de cultura e de sociedade libertárias, com base em nossas origens africanas, na cibernética e no psicodelismo”, aponta.
Poesia singular
Mangue-mundo segue com A educação pela lama I e II. E esses dois capítulos focam na poesia cabralina. A análise do poema O cão sem plumas (1950), sobre a dura vida à beira do Rio Capibaribe, tenta estabelecer novas relações com os outros pernambucanos. Francisco K define João Cabral de Melo Neto como singular e profundamente inovador não só da poesia brasileira, mas também da universal. “Ele conjuga uma poderosa imaginação metafórica com uma enorme lucidez construtiva”, aponta. “Dessa forma, é possível discutir a metáfora sem diminuir a capacidade dela de surpreender e de impactar o ímpeto criativo”.
As relações entre Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto e Chico Science vão além da experiência artística e se concentram na realidade sociocultural. “Os homens-lama que se podem identificar em O cão sem plumas e os homens-caranguejos de Josué de Castro se situam basicamente na mesma realidade social. Nas letras de Science, por sua vez, os moradores dos mangues-mocambos já parecem pertencer a uma realidade muito mais complexa, mostrando maior potencial crítico e rebelde”, finaliza Francisco K.
Mangue-mundo- A poética do mangue em Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto e Chico Science
De Francisco K/Siglaviva. 168 páginas/Preço: R$ 35
*Estagiária sob supervisão de Severino Francisco
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